domingo, 26 de setembro de 2010

PAULO ÀS AVESSAS

 

     Havia certo cristão – se na imaginação ou fora da imaginação, não sei – que a si mesmo arrebatou-se para fora do mundo. Se na imaginação ou fora da imaginação, não sei.
 
    Vivia na solidão asceta de sua cela de oração. Trancado em seu esconderijo tentava manipular as poucas pessoas mais próximas com suas citações bíblicas destacadas a esmo, de acordo com o que lhe interessava no momento. Construiu um conjunto de regras e tradições que tentava descarregar em cima dos desavisados. Edificou um muro que o separava dos míseros mortais e dos cristãos de segunda classe, pois o contato com tais pessoas acarretaria riscos desnecessários e completamente indesejáveis. Além disso, não poderia expor-se e ser pego em alguma contradição.
 
    Tinha visões. Anjos e demônios. Luzes e trevas. Adquiriu uma certa maneira de falar a respeito de Deus e para causar boa impressão forjava caras e bocas. Nada muito ousado. Um leve revirar de olhos, o pé balançando em ritmo acelerado, a voz macia e doce num enlevo espiritual invejável. Orava como só alguém muito próximo de Deus poderia fazê-lo. Colocava emotividade na voz e subia um pouco o tom, quase cantando em santo falsete. Uma diferença sutil, mas que lhe conferia um ar respeitável. Não conseguia admitir seus próprios pecados, deslizes, pisadas de bola ou coisas afins. Quando confrontado, desconversava. Sempre estava com a razão e ai de quem discordasse. Se o interlocutor não soubesse escorregar-se sabiamente, a discussão ia se estendendo a perder de vista. E como sabia aconselhar os rebeldes e carnais! Meu irmão, cada sermão...
 
    O mundo girava ao redor de si e por isso exigia que os outros fizessem o mesmo, como se ele fora o sol e as demais pessoas os planetinhas orbitando ao seu redor. Acabou por afastá-las.
 
    Muito hábil com as palavras, aprendeu a ferir de tal forma os que lhe eram próximos, pois sabia exatamente como fazê-lo. Conhecia-lhes as feridas e sabia calcular o golpe. Para tanto, não media esforços, ou seja, palavras, quando sentia que estava perdendo terreno.

    Com o tempo, seu mundo foi encolhendo assustadoramente. Começou a queixar-se de solidão. A santidade lhe custou infinitamente caro.
 
Roselena Landenberger

domingo, 19 de setembro de 2010

CINDERELA E O PRÍNCIPE ÓRFÃO

Mesa de Sapateiro II pastel oleoso s/ tela de Tânia Hanauer
http://taniacomercialhanauer.blogspot.com/

     Ela... Ela foi uma gata borralheira dentro de sua própria casa, com seus pais e seus irmãos. As duas irmãs mais velhas já haviam saído de casa para construir suas vidas e ela ficou. Mulheres não precisavam estudar. Mulheres se casavam. Mas, até isto lhe estava sendo negado. Era a primeira a se levantar e a última a se recolher. Precisava cuidar dos três irmãos mais novos que trabalhavam e estudavam para se tornarem doutores. Dormia numa cama, atrás de um guarda-roupa. Entre o fogão, a vassoura e o esfregão, os anos iam se passando e ficava cada vez mais difícil encontrar alguém com quem compartilhar a vida.
 
    Seu nome era fruto de uma superstição. Depois de três filhas, uma das quais morrera ainda bebê, teria de vir um menino. Mas o menino ainda não viera. Em lugar disso, veio mais uma menina, a quarta filha. Por sugestão das tias e comadres ela teria de carregar o nome de sua avó, o nome de Escolástica. Só assim o próximo filho seria finalmente um homem. E assim foi. O nome foi tão eficaz que o casal teve três filhos em seguida. Felizmente todos homens.
 
    Escolástica não pôde continuar na escola que ela tanto amava, e que fazia parte do seu próprio nome. Entrou aos dez, mas aos treze foi obrigada a sair. Não havia recursos para livros e cadernos. O melhor das economias teria que ser investido nos filhos do sexo masculino. Sonhava em tocar piano, mas "piano não dá camisa pra ninguém". Certa vez desenhou um teclado num caixote de madeira, na tentativa de fazer algum treino. Teve que engolir as piadas dos irmãos. Como não podia tocar, ela cantava. Tinha uma voz privilegiada, um soprano doce, de veludo, afinação exata. Cantava enquanto cuidava dos afazeres domésticos. As lágrimas escorriam-lhe pela face sem embargar a voz, que soava límpida e clara, atrapalhando os estudos dos irmãos, que vez por outra vinham fechar a porta da cozinha educadamente, sem fazer barulho.
 
    Ele... Ele foi órfão dentro de sua própria casa, com seus pais e seus irmãos. Órfão de afeto paterno. Aos quatro, levantava-se às cinco. A infância lhe fora negada. Havia trabalho para ser feito. A escola era o seu terror. "Você vai ver, vou te mandar para a escola!". O som desta terrível ameaça vociferada pelo pai o fazia estremecer de alto a baixo. Teve de ir um dia, mas ficou muito pouco para aprender quase nada. Era um lugar de castigos terríveis, monótonas ladainhas e pouco aprendizado.
 
    Viu sua mãe definhando aos poucos, vítima de uma doença sem nome, deitada numa esteira no chão. Ao perdê-la, tomado por uma dor dilacerante, sentiu-se jogado na escuridão da ausência do amor, combustível da alma. Desde cedo tentava acompanhar os passos trôpegos do pai, sem entender porque ele não conseguia andar em linha reta. Amava seus animaizinhos, que o pai arrancava-lhe das mãos sem piedade, matando-os ou vendendo-os. Aprendeu a fugir. Se o pai entrava por uma porta, ele saía por outra. Por fim, o pai perdeu o rumo da vida. Mergulhado no vício, caiu para não mais levantar. Nunca mais. Com a perda do pai, ficou completamente só, aos treze de idade. O cunhado bateu-lhe com a porta na cara. A irmã trazia-lhe vez por outra um prato de comida, às escondidas.

     Os amigos o salvaram da solidão. Teve amigos-irmãos que partilharam da sua dor. Apesar de tudo, sempre cultivou o senso de humor e driblava o medo, a fome e a solidão inventando formas para se alegrar, tramando travessuras em companhia dos amigos.
 
    Um dia resolveu partir. Colocou seus poucos pertences numa mala surrada e viajou penosamente durante muitos dias num caminhão conhecido como "pau de arara", aos solavancos, pela poeira da estrada, se é que poderia ser chamada assim. Do sertão de Pernambuco veio para o desconhecido. Cidade de São Paulo, década de 50. Completamente só, sem conhecer nada nem ninguém, ele foi tentando trabalho aqui e ali, até que descobriu-se um artesão. Subversivo, aprendeu a trabalhar com máquinas de costurar calçados, escondido do patrão, após o expediente da fábrica.

     De perseguidor passou a perseguido. Tinha ódio dos "crentes", até que foi tocado pelo Amor. "Escuta a voz do bom Pastor: 'Segue-me, vem, segue-me'". Ele não resistiu e entregou os pontos. Virou "crente". Aprendeu a ler, de fato, nas páginas da Bíblia.
 
    Começou a cantar no coro da igreja. Uma moça chamou-lhe a atenção. Chegava sempre atrasada aos ensaios, pois havia tarefas em demasiado a serem feitas: a louça do jantar para lavar, os preparativos diários para a volta dos irmãos que chegavam em casa cansados e com fome depois de um dia árduo de trabalho e estudos. Após um breve período de amizade, começaram a namorar como dois adolescentes, escondidos dos pais. Ambos estavam no limiar dos trinta anos.
 
    José sempre foi muito corajoso. Aprendeu a enfrentar a vida de cabeça erguida, sempre olhando para frente. Só vencedores agem assim. Depois de seis meses falou com o pai de Escolástica, que a contragosto permitiu o namoro. Não gostava de nordestinos. Eram gente perigosa, com a peixeira sempre em prontidão. Ele não, era de boa família. É certo que em tempos passados já tinha ensaiado uns tiros à queima roupa, mas nada grave. E com o seu usual "hum...", pronunciado em tom de "não estou gostando, mas vou engolir mais essa..." foi acolhendo aquele que, seis meses depois, tornou-se seu genro.
 
    Foi uma cerimônia simples. Escolástica, com o vestido emprestado da cunhada, sinal de mau agouro, segundo mais uma superstição conhecida. José calçou os pés de sua amada noiva com sapatos cheios da magia que destilava de suas próprias mãos, que se esmeraram em cada pequeno detalhe artesanal. Na antiga foto os noivos não sorriem. Mas são belos e trazem na expressão dos olhos o brilho da esperança, do recomeço.
 
    Lutaram com muitas dificuldades. Moraram em casas muito pobres. "Não importa aonde eu vá morar, em alto monte, à beira mar; em casa boa ou ruim, com Cristo ali é céu pra mim..." Escolástica cantava, enquanto cuidava de seus afazeres domésticos. Lágrimas deslizavam por suas faces, sem qualquer tremor na voz. Agora tinha a pequena Vera para cuidar. Vencera mais uma das pragas rogadas no momento em que nascera. Disseram as comadres, as mesmas que lhe sugeriram o nome, que ela nunca seria mãe por causa da posição em que havia nascido. Vivera no tormento daquela maldição até que, finalmente, teve a chance de aconchegar uma filha nos braços. Pouco mais de dois anos depois, nasceu-lhes outra filha. O filho homem não veio. Disseram que nunca o haviam desejado e estavam felizes com o que Deus lhes mandara.
 
    José e Escolástica se empenharam para que suas filhas estudassem. Elas não tiveram que trabalhar na infância. Puderam gozar da segurança de um lar estável. Na adolescência, finalmente, puderam estudar piano, um privilégio para poucos, conseguido com muito esforço por parte dos pais. Não passaram pela orfandade, nem pela experiência de ser escravas dentro do próprio lar. Puderam conhecer o amor de Deus e encontrar Jesus bem cedo na vida, ou melhor, foram por ele encontradas.
 
    José sempre trabalhou muito. Foi um homem de sorte. Com talento para o comércio, foi tornando a vida de sua família cada vez melhor. Nunca chegou a ser rico, não de dinheiro. Com uma vida modesta, mas confortável, continuou investindo nas amizades que a distância e o tempo não conseguiram destruir. A amizade sempre foi sua maior riqueza. A generosidade, sua marca registrada. A solidariedade, seu estilo de vida.

     Escolástica começou a pintar quadros. Suas paredes estão lotadas deles. De cores vivas e alegres, exorcizando os pesadelos dos tempos difíceis. Ainda canta a qualquer hora do dia ou da noite. Em tudo o que faz, sempre demonstra sua grande habilidade artística e sua profunda sensibilidade.
 
    Passados cinquenta anos, eles continuam juntos. Ela continua cantando e, ele, continua vencedor de desafios, trabalhando todos os dias, faça chuva ou faça sol. E foi com eles que eu, a filha mais nova, aprendi a cantar e a vencer desafios.

Roselena Landenberger

domingo, 12 de setembro de 2010

O PROFESSOR E O ANDARILHO


    Dois homens sentaram-se à mesa para debater sobre um tema e tentar responder perguntas a respeito de um dilema que diz respeito a todo ser humano. Um deles, um professor com graduações e títulos importantes. Trouxe várias publicações – uma pilha de livros dos quais ele era o autor, além de alguns artigos em periódicos – escritos de profundidade filosófica e de grande erudição, os quais apresentou-nos um a um. O outro, um homem que se assemelhava a um andarilho, vestido de trajes comuns, com uma bolsa de couro a tiracolo. Foi apresentado com um nome, uma função e uma ou duas graduações.
 
    O mediador organizava as perguntas feitas por escrito pelos participantes e solicitava esclarecimentos dos dois homens convidados. O professor tinha muitas coisas para falar, muitas críticas literárias e muitas elucubrações de profundidade teológica e filosófica. Era um privilégio estarmos ali para ouvi-lo, pois, certamente conteúdo não lhe faltava e sua palavra transmitia muito conhecimento. Ele poderia falar por horas sobre determinado tema, mas o debate não lhe permitia desenvolver seus pareceres a contento, pois o tempo era restrito. O andarilho (vou chamá-lo assim, embora o termo não deva ser aplicado ao pé da letra), bem... o andarilho foge aos padrões que construímos ao longo do tempo... Homem de grande porte, de voz grave e agradável, calmo, que gosta de rir com sonoridade, que tem muito para dizer, mas que o diz em poucas palavras... Trouxe respostas brandas e certeiras, flechas lançadas ao alvo com esmerada pontaria. Como andarilho, conhecedor de muitos atalhos, sabe o caminho mais curto para chegar calmamente no lugar certo. Por isso dispensa a bagagem extra e abre mão de todo o peso desnecessário.
 
    Saí daquele encontro profundamente impressionada. O que mais me marcou naquela noite inesquecível não foi a erudição do Mestre, mas a assertividade e a calma impressionante do Andarilho. Saí daquele encontro com o desejo profundo de ser como Jesus. Alguém que sofre porque não tem onde reclinar a cabeça, mas não se abala. Alguém que vê as pessoas de forma clara, sem preconceitos, que consegue ler intenções e que, sobretudo, ama.

Roselena Landenberger

domingo, 5 de setembro de 2010

FUGA EM DIREÇÃO DO SER



     "Não sei mais se te conheço". Este comentário atravessou-me numa manhã serena. É verdade. Tuas mãos já não mais imprimem moldes nas raízes do meu ser. Escapei. Voei longe no horizonte da vida. Tomei outras formas, diversas das que quiseste esculpir em mim, indelevelmente. Foi tudo tão fugaz que fugi das garras que me consumiam numa agonia profunda de ser quem não sei ser. Escorreguei feito sabão no limbo da ribanceira e mergulhei fundo na minha solidão. Encontrei amigos, lavei muitos pés, carreguei bacias e cingi-me de toalhas. Atordoei minha visão no emaranhado de movimentos das mãos que tentam ocultar o que o símbolo não é capaz de expressar. Viajei nos caminhos tortuosos dos mistérios da alma humana num mundo de silêncio, dor e exclusão. Não sou mais a mesma. Renasci das cinzas e do pó. Do olhar acusador, que queima o broto tenro e verde que teima em despontar do solo, não tenho mais o antigo temor. Abandonei-me ao sabor do vento. Atravessei fronteiras, conheci culturas, vislumbrei terras distantes.
 
    Ainda te amo, mas não me submeto mais aos teus caprichos. Te amo, mas não posso mais repousar meus pés no chão gelado da gaiola de ouro pendurada no lustre da tua sala. Vou amar-te sempre, ainda que com lágrimas a turvarem-me a visão. Vou amar-te sempre, mesmo que somente apareça na fresta da tua porta para saudar-te de longe. Vou amar-te sempre, mesmo que nunca saibas quem realmente sou. Vou filtrar a tua voz e deixar que adentrem os portais da minha alma somente as canções que embalaram meu sono transmitindo segurança e paz quando me sentia tão frágil e indefesa. E ao som deste teu acalanto vou amar-te eterna e profundamente pelos séculos sem fim.

Roselena Landenberger