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Mesa de Sapateiro II pastel oleoso s/ tela de Tânia Hanauer
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Ela... Ela foi uma gata borralheira dentro de sua própria casa, com seus pais e seus irmãos. As duas irmãs mais velhas já haviam saído de casa para construir suas vidas e ela ficou. Mulheres não precisavam estudar. Mulheres se casavam. Mas, até isto lhe estava sendo negado. Era a primeira a se levantar e a última a se recolher. Precisava cuidar dos três irmãos mais novos que trabalhavam e estudavam para se tornarem doutores. Dormia numa cama, atrás de um guarda-roupa. Entre o fogão, a vassoura e o esfregão, os anos iam se passando e ficava cada vez mais difícil encontrar alguém com quem compartilhar a vida.
Seu nome era fruto de uma superstição. Depois de três filhas, uma das quais morrera ainda bebê, teria de vir um menino. Mas o menino ainda não viera. Em lugar disso, veio mais uma menina, a quarta filha. Por sugestão das tias e comadres ela teria de carregar o nome de sua avó, o nome de Escolástica. Só assim o próximo filho seria finalmente um homem. E assim foi. O nome foi tão eficaz que o casal teve três filhos em seguida. Felizmente todos homens.
Escolástica não pôde continuar na escola que ela tanto amava, e que fazia parte do seu próprio nome. Entrou aos dez, mas aos treze foi obrigada a sair. Não havia recursos para livros e cadernos. O melhor das economias teria que ser investido nos filhos do sexo masculino. Sonhava em tocar piano, mas "piano não dá camisa pra ninguém". Certa vez desenhou um teclado num caixote de madeira, na tentativa de fazer algum treino. Teve que engolir as piadas dos irmãos. Como não podia tocar, ela cantava. Tinha uma voz privilegiada, um soprano doce, de veludo, afinação exata. Cantava enquanto cuidava dos afazeres domésticos. As lágrimas escorriam-lhe pela face sem embargar a voz, que soava límpida e clara, atrapalhando os estudos dos irmãos, que vez por outra vinham fechar a porta da cozinha educadamente, sem fazer barulho.
Ele... Ele foi órfão dentro de sua própria casa, com seus pais e seus irmãos. Órfão de afeto paterno. Aos quatro, levantava-se às cinco. A infância lhe fora negada. Havia trabalho para ser feito. A escola era o seu terror. "Você vai ver, vou te mandar para a escola!". O som desta terrível ameaça vociferada pelo pai o fazia estremecer de alto a baixo. Teve de ir um dia, mas ficou muito pouco para aprender quase nada. Era um lugar de castigos terríveis, monótonas ladainhas e pouco aprendizado.
Viu sua mãe definhando aos poucos, vítima de uma doença sem nome, deitada numa esteira no chão. Ao perdê-la, tomado por uma dor dilacerante, sentiu-se jogado na escuridão da ausência do amor, combustível da alma. Desde cedo tentava acompanhar os passos trôpegos do pai, sem entender porque ele não conseguia andar em linha reta. Amava seus animaizinhos, que o pai arrancava-lhe das mãos sem piedade, matando-os ou vendendo-os. Aprendeu a fugir. Se o pai entrava por uma porta, ele saía por outra. Por fim, o pai perdeu o rumo da vida. Mergulhado no vício, caiu para não mais levantar. Nunca mais. Com a perda do pai, ficou completamente só, aos treze de idade. O cunhado bateu-lhe com a porta na cara. A irmã trazia-lhe vez por outra um prato de comida, às escondidas.
Os amigos o salvaram da solidão. Teve amigos-irmãos que partilharam da sua dor. Apesar de tudo, sempre cultivou o senso de humor e driblava o medo, a fome e a solidão inventando formas para se alegrar, tramando travessuras em companhia dos amigos.
Um dia resolveu partir. Colocou seus poucos pertences numa mala surrada e viajou penosamente durante muitos dias num caminhão conhecido como "pau de arara", aos solavancos, pela poeira da estrada, se é que poderia ser chamada assim. Do sertão de Pernambuco veio para o desconhecido. Cidade de São Paulo, década de 50. Completamente só, sem conhecer nada nem ninguém, ele foi tentando trabalho aqui e ali, até que descobriu-se um artesão. Subversivo, aprendeu a trabalhar com máquinas de costurar calçados, escondido do patrão, após o expediente da fábrica.
De perseguidor passou a perseguido. Tinha ódio dos "crentes", até que foi tocado pelo Amor. "Escuta a voz do bom Pastor: 'Segue-me, vem, segue-me'". Ele não resistiu e entregou os pontos. Virou "crente". Aprendeu a ler, de fato, nas páginas da Bíblia.
Começou a cantar no coro da igreja. Uma moça chamou-lhe a atenção. Chegava sempre atrasada aos ensaios, pois havia tarefas em demasiado a serem feitas: a louça do jantar para lavar, os preparativos diários para a volta dos irmãos que chegavam em casa cansados e com fome depois de um dia árduo de trabalho e estudos. Após um breve período de amizade, começaram a namorar como dois adolescentes, escondidos dos pais. Ambos estavam no limiar dos trinta anos.
José sempre foi muito corajoso. Aprendeu a enfrentar a vida de cabeça erguida, sempre olhando para frente. Só vencedores agem assim. Depois de seis meses falou com o pai de Escolástica, que a contragosto permitiu o namoro. Não gostava de nordestinos. Eram gente perigosa, com a peixeira sempre em prontidão. Ele não, era de boa família. É certo que em tempos passados já tinha ensaiado uns tiros à queima roupa, mas nada grave. E com o seu usual "hum...", pronunciado em tom de "não estou gostando, mas vou engolir mais essa..." foi acolhendo aquele que, seis meses depois, tornou-se seu genro.
Foi uma cerimônia simples. Escolástica, com o vestido emprestado da cunhada, sinal de mau agouro, segundo mais uma superstição conhecida. José calçou os pés de sua amada noiva com sapatos cheios da magia que destilava de suas próprias mãos, que se esmeraram em cada pequeno detalhe artesanal. Na antiga foto os noivos não sorriem. Mas são belos e trazem na expressão dos olhos o brilho da esperança, do recomeço.
Lutaram com muitas dificuldades. Moraram em casas muito pobres. "Não importa aonde eu vá morar, em alto monte, à beira mar; em casa boa ou ruim, com Cristo ali é céu pra mim..." Escolástica cantava, enquanto cuidava de seus afazeres domésticos. Lágrimas deslizavam por suas faces, sem qualquer tremor na voz. Agora tinha a pequena Vera para cuidar. Vencera mais uma das pragas rogadas no momento em que nascera. Disseram as comadres, as mesmas que lhe sugeriram o nome, que ela nunca seria mãe por causa da posição em que havia nascido. Vivera no tormento daquela maldição até que, finalmente, teve a chance de aconchegar uma filha nos braços. Pouco mais de dois anos depois, nasceu-lhes outra filha. O filho homem não veio. Disseram que nunca o haviam desejado e estavam felizes com o que Deus lhes mandara.
José e Escolástica se empenharam para que suas filhas estudassem. Elas não tiveram que trabalhar na infância. Puderam gozar da segurança de um lar estável. Na adolescência, finalmente, puderam estudar piano, um privilégio para poucos, conseguido com muito esforço por parte dos pais. Não passaram pela orfandade, nem pela experiência de ser escravas dentro do próprio lar. Puderam conhecer o amor de Deus e encontrar Jesus bem cedo na vida, ou melhor, foram por ele encontradas.
José sempre trabalhou muito. Foi um homem de sorte. Com talento para o comércio, foi tornando a vida de sua família cada vez melhor. Nunca chegou a ser rico, não de dinheiro. Com uma vida modesta, mas confortável, continuou investindo nas amizades que a distância e o tempo não conseguiram destruir. A amizade sempre foi sua maior riqueza. A generosidade, sua marca registrada. A solidariedade, seu estilo de vida.
Escolástica começou a pintar quadros. Suas paredes estão lotadas deles. De cores vivas e alegres, exorcizando os pesadelos dos tempos difíceis. Ainda canta a qualquer hora do dia ou da noite. Em tudo o que faz, sempre demonstra sua grande habilidade artística e sua profunda sensibilidade.
Passados cinquenta anos, eles continuam juntos. Ela continua cantando e, ele, continua vencedor de desafios, trabalhando todos os dias, faça chuva ou faça sol. E foi com eles que eu, a filha mais nova, aprendi a cantar e a vencer desafios.
Roselena Landenberger