domingo, 28 de novembro de 2010

O DIA QUE NÃO FOI A MESMA COISA

    "Todo o dia a mesma coisa... Todo o dia a mesma coisa", resmungava a Dona Ida, aquela da vendinha da esquina, zona norte de São Paulo, anos 60, 70, 80... Ajudava a servir pinga no estabelecimento comercial do irmão. Não tinha só pinga, tinha leite – no tempo em que era vendido em garrafas retornáveis – sacos de arroz, feijão, farinha, que ela colocava em saquinhos de papel e pesava numa balança de ponteiro, de acordo com o que o freguês solicitava. Entre balas, doces de batata doce ou de abóbora, marias moles, barras de sabão de coco, garrafas de tubaína e mantimentos diversos as horas se arrastavam lentamente, tanto quanto os chinelos daquela senhora. No maior tédio. Dona Ida juntava o que lhe fora pedido, rabiscava os preços numa caderneta com as pontas das folhas amarrotadas e somava os valores com a sua "boa vontade" habitual.
 
    Em parca linguagem eclesiástica ela repetia a todos a mesma frase: "Todo o dia a mesma coisa... Todo o dia a mesma coisa..." E seguia, ou melhor, quedava-se triste. Nenhum sorriso, sempre de mau humor e semblante caído. Em suas idas e vindas, Dona Ida literalmente se arrastava para providenciar as mercadorias pedidas. "Todo o dia a mesma coisa". Movia-se com dificuldade na vendinha escura e apertada. "Todo o dia a mesma coisa". Primavera, inverno, outono, verão, chuva, sol, Natal, Carnaval, Páscoa... "Todo o dia a mesma coisa". Sem alegria, sem colorido. Uma rotina que matava a alma.

    Mas houve um dia em que choveu torrencialmente. Choveu como não chovia há décadas. O Rio Tietê transbordou e a água caminhou cobrindo as ruas e invadindo as casas até entrar de mansinho na vendinha da esquina.

    A água subiu.

    A água baixou.

    Dona Ida colocou-se à porta da venda com a mesma fisionomia desolada de sempre e calou o seu refrão.

Roselena Landenberger

domingo, 21 de novembro de 2010

CANÇÃO PARA RAQUEL

Liberta teus sonhos prisioneiros,
Que dancem livres, altaneiros.
Mantém tua chama acesa,
Sem receios nem certezas.
 

Que o teu coração pulse ao sabor do vento,
Navegando nas asas de quem sopra onde quer:
Todo o amor, toda a esperança
Nas mãos de quem não se cansa.
 

Que teus pés corram ligeiros –
Passos largos e certeiros:
Tuas mãos trabalhem incansáveis
Mesmo nos tempos instáveis.
 

Brilhe o sol no teu olhar,
No teu sorriso, o luar:
Seja a lágrima o orvalho
De um caminho sem atalho.
 

Lança a voz ao horizonte,
O teu canto aos quatro cantos.
Convoca as constelações
Para ouvirem as canções
Do brilho do sol,
Da luz do luar –
Saudade e ternura,
Amar e esperar.
 

Roselena Landenberger

domingo, 14 de novembro de 2010

ARTUR ALBERTO

 
      Um dia, numa de nossas reuniões, ele nos disse que iria embora. Desatei num choro incontrolável, ali, na frente de todos. Ele olhou para mim, enternecido, e disse: "Não sabia que você me amava tanto". Eu também não sabia.

     Era um homem duro, taciturno, de grande erudição, extremamente inteligente e perspicaz. Poucas palavras, olhar profundo. Sempre que podia, eu fugia dele. Quando numa de suas muitas visitas pastorais, vinha até nossa casa, ficava a olhar detidamente bem na nossa cara sem dizer palavra. Parecia que podia ficar horas só nos observando, perscrutando com seu olhar clínico.
 
    Durante anos ele estendeu a mão para minha filha ainda pequena, sem que ela lhe desse a mínima. Mas ele era um expert na arte de esperar. Certa vez, para puxar conversa, ele perguntou-lhe o nome. Ela, com cerca de quatro ou cinco anos, escondeu-se atrás da poltrona da sala em que estavam e, esticando o braço para cima do encosto, escreveu letra por letra do seu nome em alfabeto manual, como num teatrinho de marionetes. Eu não estava presente para ver a expressão do rosto dele. Somente cerca de quatro anos mais tarde é que minha filha finalmente retribuiu o cumprimento, estendendo-lhe a mão de volta, para meu espanto.
 
    Por causa do meu envolvimento nos bastidores da comunidade ele acabou por convidar-me para fazer parte de sua equipe ministerial, participando das reuniões semanais. Relutei. Desfiei algumas desculpas. Mas ele não era homem de aceitar desculpas. Trabalhava às claras, e só aceitava a verdade, nada além da verdade. Convidou-me novamente e outra vez até que, para não ficar chato, cedi.
 
    Ele era muito exigente com sua equipe. Às vezes eu me chocava com sua forma direta de dizer o que tinha que ser dito. Cravava as palavras como punhais certeiros em direção ao alvo. E que pontaria! Dizia tanto com tão pouco. A sala em que nos reuníamos, o gabinete dele, foi se tornando um lugar de profundo aprendizado. Fotografei-a sob vários ângulos e arquivei-a numa pasta de memórias, de boas memórias. Colhi o aroma que impregnava a sala num frasco, para tê-lo sempre à mão. Cheiro de biblioteca. Vinha da sala ao lado, sua biblioteca pessoal. Cada detalhe da sala rústica ficou gravado nas minhas lembranças. Os quadros, o arquivo antigo, a escrivaninha, as cadeiras estofadas já desgastadas pelo uso, tudo muito simples. Suas orações ainda ecoam em minha mente, e seu jeito profundo de nos encarar.
 
    Levo pela vida afora as marcas da personalidade intrigante e instigante que foi a dele. Bendito seja Deus que me forçou um tantinho essa aproximação, para mim inicialmente tão indesejada. Como um pai que dá um empurrãozinho no filho tímido, a fim de que ele não perca oportunidades valiosas de crescimento, assim Deus me empurrou delicadamente na direção deste homem inesquecível. Lembro-me das palavras de A. W. Tozer que diz em algum lugar que os homens de Deus nem sempre aparentam ser agradáveis, porém, atrás de uma fachada não tão atraente e de palavras muitas vezes duras podemos encontrar uma riqueza de valor incalculável de vivências, crescimento e sabedoria. Tozer tinha razão. Aquele homem não foi só meu pastor e mentor. Ele foi mais que isso. Ele foi meu pai.

Roselena Landenberger

domingo, 7 de novembro de 2010

CONSCIÊNCIA

    Criar é apaixonante. Uma receita nova. Um trabalho artesanal. Um conto, um canto, um ponto multiplicado. Ver as muitas possibilidades de realizar uma tarefa. Fazer com garra, com sonho, com imaginação.
 
    Criar é transcender. É mágica, fuga do tempo, saída de emergência para a eternidade.
 
    Muitos de nós perdemos a capacidade para criar. Talvez nossas asas foram cortadas na tenra infância. Mais tarde, a luta pela sobrevivência se interpôs, abafando o florescer da vida pulsante. Acostumados a sempre competir, adoecemos, vítimas de uma sociedade de consumo. Uma propaganda é resposta para outra que anuncia um produto concorrente. Um filme é cópia mal feita de outro. Cada vez mais tosco, cada vez mais fosco, menos humano, mais coisa.
 
    Reconstruir o mundo é fazer ressaltar as diferenças. Não podemos pintar tudo da mesma cor. Há matizes inexplorados pululando no Universo. O Criador nos presenteou com uma gama infinita de tons. É preciso coragem para ousar fazer o que a grande e arrasadora maioria não quis sequer experimentar. Por medo, comodidade, falta de motivação.
 
    Criar é ser mais parecido com o Criador, é participar da natureza do seu ser. Criar vislumbres de alegria e esperança em meio ao abandono e à dor. Ser Doutores da Alegria, Mestres da Compaixão, PhDs em Solidariedade. Ousar mudar as cores sombrias do quadro em preto e cinza da pobreza e da rejeição. Sem negar a realidade brincando de faz-de-conta, mas na doação de si mesmo para aliviar o sofrimento dos que choram suas perdas numa sociedade que valoriza o falso, o efêmero, que dá carta branca ao corrupto e assiste ao jornal da TV de braços cruzados...
 
    Bem, vou parar por aqui, porque a minha consciência começou a me incomodar...
 
Roselena Landenberger