"Todo o dia a mesma coisa... Todo o dia a mesma coisa", resmungava a Dona Ida, aquela da vendinha da esquina, zona norte de São Paulo, anos 60, 70, 80... Ajudava a servir pinga no estabelecimento comercial do irmão. Não tinha só pinga, tinha leite – no tempo em que era vendido em garrafas retornáveis – sacos de arroz, feijão, farinha, que ela colocava em saquinhos de papel e pesava numa balança de ponteiro, de acordo com o que o freguês solicitava. Entre balas, doces de batata doce ou de abóbora, marias moles, barras de sabão de coco, garrafas de tubaína e mantimentos diversos as horas se arrastavam lentamente, tanto quanto os chinelos daquela senhora. No maior tédio. Dona Ida juntava o que lhe fora pedido, rabiscava os preços numa caderneta com as pontas das folhas amarrotadas e somava os valores com a sua "boa vontade" habitual.
Em parca linguagem eclesiástica ela repetia a todos a mesma frase: "Todo o dia a mesma coisa... Todo o dia a mesma coisa..." E seguia, ou melhor, quedava-se triste. Nenhum sorriso, sempre de mau humor e semblante caído. Em suas idas e vindas, Dona Ida literalmente se arrastava para providenciar as mercadorias pedidas. "Todo o dia a mesma coisa". Movia-se com dificuldade na vendinha escura e apertada. "Todo o dia a mesma coisa". Primavera, inverno, outono, verão, chuva, sol, Natal, Carnaval, Páscoa... "Todo o dia a mesma coisa". Sem alegria, sem colorido. Uma rotina que matava a alma.
Mas houve um dia em que choveu torrencialmente. Choveu como não chovia há décadas. O Rio Tietê transbordou e a água caminhou cobrindo as ruas e invadindo as casas até entrar de mansinho na vendinha da esquina.
A água subiu.
A água baixou.
Dona Ida colocou-se à porta da venda com a mesma fisionomia desolada de sempre e calou o seu refrão.
Roselena Landenberger