domingo, 23 de junho de 2013

DEUS ACABOU COMIGO





               Deus, o Senhor acabou comigo. E eu que achava que era muita coisa, que tinha tanta coisa que os outros não tinham. E não me refiro às coisas palpáveis, mas às impalpáveis, dessas que o dinheiro não compra nem remedia, como talento, sensibilidade, criatividade, inteligência.


               Hoje o Senhor chegou mais perto, deixou-se descobrir e foi só aí que eu percebi. Percebi que não sou nada, que não tenho nada. Dei-me conta de que quem me faz ser e quem pode doar alguma coisa a quem quer que seja nesta história toda é só o Senhor, ninguém mais.


               Foi nesse exato momento que o Senhor acabou comigo. Chegando de manso, falando baixinho, sussurrando no vento mesmo. Sentindo a brisa na face e atentando para a voz suave que fazia eco no âmago do meu ser, acordei para mim mesma. Acordei para o mundo. Acordei para Deus. O Senhor acabou comigo para poder começar tudo de novo. Agora entendi. Não posso evitar a dor de ter de lhe entregar tudo que penso ser meu. Quando acho que já entreguei tudo, que não há mais nada comigo, o Senhor olha bem dentro dos meus olhos,  como que perguntando: “Tem certeza? Você tem certeza de que não está retendo nada ou  tentando esconder alguma coisa de mim? Logo eu, que sei tudo, – e quando eu digo tudo, é tudo mesmo – inclusive, que você não se deu conta de que ainda estão faltando alguns itens?”


               “É mesmo, Senhor. Tem também mais isso... e mais aquilo. Toma. É tudo teu.”


               “Tudo, de verdade? E amanhã? E depois de amanhã?”


               “Está bem, o Senhor venceu. Amanhã entrego tudo de novo. Depois de amanhã também. E assim sucessivamente.”


               “Está bem, filha. Quero que continue assim. Se você fizer a sua parte, não imagina o que eu sou capaz de fazer.”


               “Sim, Senhor. Não imagino mesmo...”


©2013 Roselena Landenberger



sexta-feira, 21 de junho de 2013

CONTRAÇÕES




Cada discurso com nexo, mas sem intenção de ser cumprido, foi uma bomba de gás lacrimogêneo que explodiu na cara dos brasileiros. E como se não bastasse, tentaram apreender todos os frascos de vinagre para que não acordássemos do torpor esfumaçado. Ó, Pátria amada, iludida, salve, salve.


Cada voto escolhido com cuidado ou na influência dos mais bem cotados na mídia, que foi colocado numa urna e ajudou a eleger mais um injusto, fez uma conversão e voltou em forma de bala de borracha, ferindo e sangrando, na cara dos brasileiros. Ó, Pátria amada, ludibriada, salve, salve.

Cada lei absurda que legisla a favor da corrupção, aprovada embaixo do barulho dos meios de comunicação – comprados para jogar os holofotes em cima de algum fato ou crime polêmico – foi um jato de pimenta na cara dos brasileiros. Ó Pátria amada, injustiçada, salve, salve.


Cada centavo extorquido da mesa do pobre, cada centavo que entrou no bolso dos que governam a favor de si mesmos, foi uma tropa de choque que barrou o caminho dos brasileiros tornando-o mais longo, mais árduo, mais sofrido. Ó, Pátria amada, escravizada, salve, salve.


Cada ato de corrupção, propina, suborno e perversão, praticado pelos que deveriam zelar pela integridade da nação, foi uma bomba de efeito moral devastador, que invadiu a imprensa mundial e pesou no coração dos brasileiros. Ó, Pátria amada, extorquida, salve, salve.


Que para cada tentativa de calar a voz deste povo que clama por justiça, para cada ação desvairada de abuso ao oprimido; cada vez que alguém que se encontra em situação de poder não honrar a posição que Deus lhe permitiu ocupar, e, em lugar disso se aproveitar para ditar duras e injustas medidas e atar com ataduras de opressão e violência; para cada vez que a cavalaria dos poderosos relinchar em coices sobre as manifestações preservadas pelos direitos constitucionais, que sejas, ó Pátria amada, para cada uma destas ações aviltantes, mil vezes mais destemida, determinada, ousada, verdadeira e confiante.

Salve, salve.


©2013 Roselena Landenberger

quarta-feira, 12 de junho de 2013

JOÃO-NINGUÉM






Deus gosta de usar João-ninguém. Deus pode torná-lo em alguém chamado João.

Quando João-ninguém se deixa transformar em alguém, depara-se com uma bifurcação no caminho. Precisa analisar o mapa e fazer escolhas. Ele pode acender as luzes sobre sua cabeça e começar o show. Pode vender sua identidade. Procura alguém de renome e observa. A entonação de voz, o gestual, as atitudes exteriores, as criações e a genialidade desse alguém, tudo é objeto do interesse do João. Estuda-lhe o discurso e afunda-se num plágio obscuro. Sua vida é uma colagem que lhe rouba a face. Torna-se caricatura. Uma triste aberração. Agora, João não é mais João. É apenas ninguém.

Mas, João, que era ninguém e se tornou alguém, pode escolher seguir pelo outro lado. João sabe que as luzes estão sobre ele, mas não se sente confortável quanto a isto. Pelo contrário. Gostaria mesmo é de escorregar de manso rumo à coxia e lá permanecer, quieto e desconhecido. Porém, sabe que há coisas a serem feitas e ele, João, precisa fazê-las. João torna-se cada vez mais João. Sua consciência é mais nítida. Ele foi criado para ser João. E quanto mais ele torna-se João, mais atrai o sorriso do Criador sobre si. Mas, como João consegue verdadeiramente tornar-se João? Ah, isso não é nada fácil. É um caminho de dor, de abrir mão, de entrega, suspiros e lágrimas. Custa caro. Tudo o que é precioso tem preço alto. Muito alto. E João, pela graça de Deus, quer pagar o preço.


©2013 Roselena Landenberger

domingo, 9 de junho de 2013

A PAREDE DA SALA


        
     Havia naquela parede uma linha delineada tão fina, quase imperceptível. Ignorei-a por um longo tempo, até que ela começou a desenhar-se com maior nitidez. Tentei remediar a situação com uma camada de massa corrida, assim, passada às pressas só para disfarçar. Pouco tempo depois a massa branca foi desfolhando e caiu feito outono no piso frio. A fenda crescera assustadoramente e sorria em tom de zombaria e despeito. Arranjei um pouco de cimento. Deu mais trabalho dessa vez, mas apesar do aspecto ondulado e áspero e da pintura mal acabada, serviu para encobrir a fina ironia da insistente rachadura. Porém, passado mais um tempo o cimento veio a abrir-se feito fruta madura demais, que se espatifa no chão. Consegui algumas tábuas, pregos e martelo para fincar de uma vez por todas na parede e torná-la uma única peça, como sempre fora. Após toda a violência e pancadaria do martelo esmurrando os pregos e estes rasgando a madeira que acabava por dar um aspecto cada vez mais repulsivo à tão prezada arquitetura da simples parede e sentindo as mãos ardendo pela falta de prática, achei que com uma camada caprichada de tinta e mais alguns detalhes para disfarçar a feiura do negócio, por fim estaria tudo de volta à tão esperada paz. Havia planejado comprar algumas flores e folhagens artificiais para enfeitar as tábuas cuidadosamente pintadas e dar um aspecto artístico àquela bendita parede. Fui dormir exausta torcendo para amanhecer logo o dia para continuar minha grande obra. 


No meio da noite, com a lua já bem ajeitada no céu, pensei ter ouvido um estrondo na sala. Em meio à exaustão, o ruído misturou-se aos meus sonhos ou quem sabe, pesadelos. Lembro-me de ter remado a noite toda contra uma forte correnteza, quando a baleia de Jonas surgiu não sei de onde e abriu sua boca enorme para tentar fazer com que todos os meus esforços escorressem pelo ralo, literalmente. Pela manhã bem cedo, o sol ainda bocejando e espreguiçando-se nas montanhas, desci de mansinho pelas escadas para dar uma espiada e ver se estava tudo como eu havia planejado. Mal havia alcançado o degrau que dava visibilidade ao que eu tanto temia, senti o coração martelando e as mãos escorrendo tinta como pincel sendo lavado. Sim, aconteceu o que eu tentava a todo custo evitar. Uma imensa ruptura. Mas por detrás da grande ruptura havia para surpresa minha, um pomar, um jardim ou ambos. Árvores estenderam seus galhos e suas folhas alcançaram o teto. Flores depositaram-se sobre os móveis sem necessidade de vasos. Frutos eram lustres e lustres eram luzes naturais, pequeninas estrelas com vida própria. O gramado derramou-se pelo sofá e bordou o tapete. Ao centro uma cascata sobre a mesa, um chafariz surpreendente. Muitos sons enchiam o ambiente. A canção dos pássaros, o choro das águas, o riso da brisa. Pisei naquele solo sagrado e caí de joelhos. Obrigada, Deus, por mais uma vez não levar em conta os meus desatinos. E segui respirando gratidão.

Outro dia, observei uma pequena fenda em outro cantinho da casa. Quando ela se tornar perceptível o suficiente, o que você acha que eu devo fazer?

©2013 Roselena Landenberger