domingo, 31 de outubro de 2010

FRASE ESQUECIDA


    Desde que nossas pupilas tornaram-se áridas qual solo seco e rachadiço, nosso coração foi murchando e perdendo a força. O sangue passa automaticamente por nossas veias retorcidas contorcendo-se custosamente para tentar achar um caminho dentro do labirinto da alma envolta nas sombras e no luto cinzento. O sofrimento do mundo já não nos comove mais. Que nos importa se crianças forem impedidas de ver a luz? Que temos nós contigo, menina? Que diferença fará se teu filho nascer ou se perecer ainda no teu jovem ventre? Valerá a pena colocar em risco nossa segurança para salvar uma vida que seja? Talvez suspiremos tentando aliviar a consciência dormente: um delinquente a menos por estas paragens. Jogar um raio de luz na escuridão poderá nos custar um preço que não estamos dispostos a pagar. Melhor manter os olhos secos e a alma estanque. Sem dor, sem remorsos, sem sofrimento. Melhor para todos.
 
    A menina dos nossos olhos é o nosso próprio umbigo. A omissão é o passaporte mais seguro para a tão desejada paz de espírito. O que eu quero é sossego. A ética da vista grossa é fácil e o seu caminho agradável e atraente.
 
    Por que iríamos arriscar nosso emprego, nossa garganta em defesa dos valores do Reino de Deus? Vejam o que aconteceu com Dietrich Bonhoeffer. Fez o que fez e simplesmente perdeu tudo. Preso durante um tempo e enforcado às portas do final da segunda guerra, porque se dispôs a agir diligentemente para tentar impedir que a loucura de Hitler chegasse ao ponto em que chegou. Tudo o que ele avistava da janela de sua cela eram pequenos insetos e pássaros – quando tinha sorte. Foi esse cenário que lhe trouxe pequenas alegrias enquanto aguardava, aguardava e aguardava a tão sonhada utopia que não pôde experimentar.
 
    Não, não vale a pena. Vamos continuar de olhos fechados. Deixemos a miséria e a dor tomarem conta daqueles com quem nos deparamos. Não vamos interferir nas suas decisões. Deixemos que optem pela morte e destruição. Não vamos nem sequer insinuar alternativas ou caminhos de vida. Não será bom para o nosso currículo.

     E quando nossa intelectualidade, retórica, argumentos irrefutáveis e postura ética tiverem nos distanciado milhares de milhas dos faróis sinalizadores do Reino, só nos restarão o desespero e o horror. Seguiremos lamentando-nos da nossa própria miserabilidade, completamente perdidos, nossos olhos sem brilho fitando o espelho e perguntando-nos o que foi que aconteceu conosco.
 
    Mergulhados em nosso próprio cinismo, andando em círculos, olhar desvairado, loucos, insanos, nossa única saída, se Deus assim o permitir, estará ainda cravada numa frase antiga de um manuscrito ultrapassado, cheio de poeira e corroído de traças: "Lembra-te de onde caíste, e arrepende-te...".

Roselena Landenberger

 

domingo, 24 de outubro de 2010

CORAÇÃO CRISTÃO


Pai,
Livra-me da religião
Dos laços do auto-engano, do legalismo,
Do pecado do cinismo.
Livra-me da maldade
De julgar e condenar
O meu próprio irmão
Do alto da minha perfeição.
Desvia os meus olhos, Senhor,
Da imagem distorcida no espelho
A me sorrir com orgulho,
Das mentiras da própria alma,
Da cegueira a respeito de mim,
Da altivez do coração.
Antes o remédio amargo da cura
Que o câncer da ignorância.

Estou cansada, Senhor,
Cansada da religião.
Quero o caminho da cruz,
A dor palpitante e viva
De saber-me miserável pecadora.
Quero a espada que traspassa,
Que julga toda e qualquer intenção.
Longe de mim o conforto
De estar sempre com a razão,
De ter todas as respostas.
Longe de mim o sentimento
De auto-satisfação,
Onde não há lugar de pesar,
Nem chance de arrependimento.

Quero um coração cristão,
Para trás, religião! 


Roselena Landenberger

domingo, 17 de outubro de 2010

ORAÇÕES E ANOTAÇÕES

    Quando me percebi mesquinha e interesseira, parei de orar. Afinal minha motivação para a tal vida de oração sempre fora fútil e egoísta. Anos de oração mecânica e vãs repetições gentílicas congelaram meu relacionamento com Deus na infância da minha vida e da minha caminhada com ele. Tudo o que eu sabia orar consistia em pedir "se for da tua vontade abre ou fecha tais e tais portas", e coisas do gênero. A coisa toda foi ficando tão automática que se transformou num ritual morto e sem sentido. Orações decoradas e repetidas a esmo em horários preestabelecidos. Era uma fórmula fácil de ser aplicada em qualquer situação. Até que um dia eu precisei realmente de socorro. Foi quando ousei colocar os pés para fora de minha confortável redoma religiosa, envolvendo-me no serviço a outras pessoas que descobri-me perfeitamente incapaz e despreparada para atender suas necessidades. Aí, comecei a orar, no desespero mesmo. Sem importar-se com minhas verdadeiras motivações, Deus foi adentrando mais e mais na minha vida. Pois ele é a Misericórdia em Pessoa.
 
    Ao mesmo tempo em que Deus graciosamente tocava nas profundezas da minha alma revelando-me coisas que eu não sabia a meu respeito, meu status religioso foi subindo. As pessoas passaram a me considerar uma "mulher de oração". Adquiri um nome e um título eclesiástico. Comecei a gostar da situação. Exercia um ministério de luzes e palco e isso facilitava as coisas. O status e a admiração de outros sempre me pareceram tão atraentes, que a ideia foi tomando corpo em minha mente e em meu coração. A ideia de que eu era melhor do que a "plebe".
 
    Naquela época notei que se orasse com certa entonação de voz e interpretasse meu papel direitinho, as pessoas acabariam subindo mais um ponto no seu conceito a meu respeito. Então usei este recurso também. Funciona que é uma maravilha...
 
    O lado negro dos fariseus subiu-me à cabeça e o resultado foi desastroso. Se bem que, Deus, apesar de tudo, continuou trabalhando para que eu pudesse aos poucos perceber quem eu realmente era. Não foi uma "visão beatífica", foi uma visão "horrorífica", muito difícil de ser engolida, mas que deixou marcas profundas. Se, por um lado eu me sentia como a pior das pecadoras, por outro, continuava achando-me melhor do que os outros cristãos por ter tal consciência. Paradoxal. Mas, quando percebi minhas reais intenções foi que parei de orar.
 
    Pouco tempo depois, fui confrontada novamente, desta vez em outra área. Durante os ajuntamentos da minha comunidade havia adquirido o hábito de anotar as mensagens como se fossem aulas. Comecei a colecionar cadernos de anotações e pretendia juntar muitos outros, quando percebi que isto também fazia parte de um jogo, mais um teatro que eu representava muito bem. Não que todos os que gostam de anotar mensagens nas celebrações coletivas se encaixem no mesmo esquema. Mas, para mim ficou muito claro que aquele velho hábito de debruçar-me sobre um caderno anotando diligentemente cada ideia ou o máximo possível de palavras já não mais me servia como algo saudável. Havia se tornado um hábito pernicioso, um vício.
 
    Foi quando participei de um estudo realizado na mesma comunidade. Ao término da reunião o líder solicitou que alguém encerrasse orando voluntariamente. Uma pessoa apresentou-se para orar. Ela era uma das minhas. Anotava tudinho, ou quase. Durante o tempo que passamos juntos naquele dia havíamos conversado muitas coisas a respeito do Reino de Deus. A respeitável pessoa, ao orar encerrando a reunião que ela havia (como eu) anotado com tanta dedicação, contradisse a maioria das coisas que havíamos acabado de ouvir e anotar com toda veemência. Lembro-me bem de um apelo feito antes da citada oração em prol de uma arrecadação de doações que seriam vendidas, cujo lucro seria revertido em favor de várias ações sociais apoiadas pela comunidade. O líder reforçou que deveríamos doar as coisas que ainda gostaríamos de usar, que tinham valor para nós, que não eram consideradas como refugo. Deveríamos abrir mão destas coisas e trazê-las para que abençoassem outras pessoas. Pois bem, dentre as várias coisas que a citada pessoa pediu em oração, além das contradições a vários itens do estudo, também pediu a Deus que nós pudéssemos trazer daquilo que estava sobrando em nossos lares para ajudar os necessitados.
 
    Depois dessa, parei de anotar as mensagens. Talvez ainda volte a fazê-lo, não sei. Mas por enquanto o impacto dessa cena ainda perdura no meu coração e não vejo sentido para que eu retome o velho hábito. Tempo para tudo, diz o Eclesiastes. Tempo para anotar no papel, tempo para gravar no coração. De nada me adiantarão folhas repletas de frases e palavras chave, e dentro de mim, um coração em branco. Ou, pior, um coração incoerente, contradizente.
 
    Quanto à oração, mudei o enfoque. Quero orar com a correta motivação. Quero orar porque quero experimentar Deus. Foi o que acabei de aprender através de uma mensagem durante a celebração em minha comunidade.
 
    E nem precisei anotar.
 
Roselena Landenberger

domingo, 10 de outubro de 2010

AMPULHETA

    Há tempos eu não caminhava assim, de manhã bem cedo, entre árvores e pássaros. Havia planejado o meu dia, que finalmente seria mais tranquilo. Ao chegar em casa minha filha recebeu-me com um sorriso aberto. Ela tinha uma surpresa para mim. Uma surpresa que modificaria todos os meus planos para aquele dia calmo. Filhos... Não são eles que enchem a nossa vida de lágrimas e risos, idas e vindas, chegadas e partidas? Não são eles que embaralham todas as peças do nosso quebra-cabeça cuidadosamente encaixado, quebram a nossa rotina certinha e planejada, desestruturam tudo e todos, fazendo-nos voltar os olhos cada vez mais de dentro para fora, como uma flor que desabrocha e pouco depois se curva murcha e descorada, mas só que em sentido inverso? Ah! Filhos... Viver sem nunca tê-los tido é como viver em duas dimensões apenas. E não me refiro apenas aos filhos biológicos, mas também aos filhos da alma. Cuidar de outros é algo custoso que requer de nós sacrifício e desprendimento e por isso mesmo traz recompensas imensuráveis. Pois os filhos, sejam eles biológicos ou filhos do coração, alargam nossa visão de mundo e nos ensinam uma dimensão da vida que só pode ser conhecida por quem se dispõe a pagar o preço. Não tive como recusar. Era uma tarefa urgente, ninguém mais poderia fazê-la. Aceitei contrariada a princípio, com um peso no coração, o qual tentava inutilmente ocultar.
 
    Foi um dia repleto de alfinetes coloridos, fita métrica, tesoura, tecido, linha e agulha. Medir, cortar, zig-zag, a agulha sobe e desce perfurando o tecido vezes sem conta enquanto o ponteiro do relógio desenha círculos e mais círculos – ao todo dez e meio. Na medida em que a geometria monótona vai se delineando rapidamente, na ampulheta da alma o rancor vai escoando lentamente. A areia densa e escura move-se com dificuldade através da passagem estreita e ali ela se processa de forma quase que imperceptível tornando-se branca, leve, fina e adquirindo certa dose de brilho.
 
    Quando os dois ponteiros se cumprimentaram apontando o céu, encontrava-me exausta, porém realizada. Nós havíamos conseguido. Com a ajuda dos que me são mais queridos a tarefa foi terminada e a recompensa maior foi o sorriso daquela perturbadora e adorável mocinha que me desafiou a sair da minha confortável situação para viver o inusitado transformador.
 
Roselena Landenberger

domingo, 3 de outubro de 2010

TEMORES E DESTEMORES


    Não temo a dor da separação. Temo, sim, ser as mãos do algoz que dita as regras da tua execução. Temo ser o amor ardente que sufoca o ser amado e o joga nas masmorras cruéis da manipulação. Temo ser a voz que ecoa nos flagelos dos teus mais temidos pesadelos. Temo ser o olhar fulminante que queima os teus mais ternos e tenros sonhos. Temo ser a razão do gemido excruciante da tua alma que soluça no labirinto da agonia inexplicável. Temo ser a fada com alma de bruxa com sua varinha de condão às bordas do caldeirão em ebulição. Temo ser os pés rudes que marcham impiedosamente sobre teus mosaicos de areia colorida.

    Quero que voes livremente pelos campos do mundo trilhando o azul do infinito, sentindo a brisa a beijar-lhe as faces. Quem sabe, vez por outra voltarás para cantar com tua voz diáfana canções belas e estranhas aprendidas em longínquas terras. Ouvirei solenemente, e ao ver-te partir novamente terei o brilho das estrelas no olhar e o orvalho do céu descendo lentamente pelo rosto ao refletir no infinito um arco-íris de esperança.
 
Roselena Landenberger