domingo, 23 de janeiro de 2011

484

    Da linda pátria estou mui longe... Por isso não vou me preocupar com o que tem acontecido por aqui, afinal de contas não sou mesmo deste mundo. Um terremoto aqui, outra enchente ali, incêndios, desmatamentos, guerras, chacinas, violência, tudo é cumprimento de profecias. Um verdadeiro apocalipse. Não há o que fazer, está tudo determinado.

    Triste eu estou... A vida fica muito chata quando não pertenço a nada e nada me pertence. É entediante não ter uma causa pela qual lutar. Os dias são uma sequência de deveres e obrigações. Só me resta esperar pelo futuro, pois o presente não vale a pena.

    Eu tenho de Jesus saudade... Pois é, ele está tão, tão distante... É impossível vê-lo na face dos que sofrem, afinal ele era um homem lindo, hollywoodiano, paradoxalmente um ariano, estereótipo de bonitão, loiro, de olhos azuis, mesmo nascendo onde nasceu, barba bem feita, cabelos longos, com aquele olhar de "eu não sou deste mundo", tão limpinho e cheiroso, de vestes brancas e manto azul. E desde que ele subiu às alturas e seus pés foram vistos pela última vez pela frestinha de uma nuvem reluzente não se achou substituto à altura, a não ser, é claro, o Consolador, que anda por aí, mas ninguém sabe ao certo onde.

    Quando será que vou? Ó, mundo cruel, quero morrer, e logo! Assim poderei ir rapidinho para o céu. Não terei mais que trabalhar, sofrer, chorar, ver tragédias na TV, conviver com os pecadores e sua podridão, neste mundo em decadência, cheio de injustiça, corrupção, mensalão, apagão, guerras estúpidas em nome de Deus, etc, etc... Qual a vantagem de viver?

    Passarinhos, belas flores querem me encantar... Xô, passarinho! Você está me distraindo (aliás, aqui na cidade tem tão poucos e são tão pequenos). E as flores inúteis também atrapalham minha vida de santidade. Quero mais, muito mais. Preciso de ruas de ouro, de mansões celestes (no caso de chover...), rio da vida, coroas, harpas, longas vestes. Sem lágrimas, sem espinhos, sem dor. Ô, glória!

    Ó, vãos terrestres esplendores... Por que será que Deus inventou de criar estas coisas vãs e tentadoramente lindas? Deixem que tudo se acabe mesmo! Vou só assistir de camarote com a Bíblia e o Hinário na mão. Por que lutar para tornar o mundo um lugar mais habitável e digno? Para que reciclar o lixo, economizar água, ser solidário, tentar minimizar o sofrimento à minha volta, se tudo vai acabar um dia mesmo? Que canseira!

    Se "aqui não é meu lar" e "avisto no portal um anjo a chamar", se posso em breve estar no céu com todos os que amo, "felizes para sempre", que se dane o mundo. É óbvio que não quero aqui ficar.

     Por isso o mundo está como está. Mas, não tem problema, são apenas vãos terrestres esplendores.

* * *

    Agora, uma breve explicação. As frases em itálico são a transcrição na íntegra da primeira estrofe de um hino que se encontra em um dos hinários mais tradicionais das igrejas evangélicas, com o nome de "Cantor Cristão", sob o número 484. Hinário este, canonizado por muitos e em tempos passados acoplado a algumas Bíblias como se fosse o segundo livro do Apocalipse. Contém este hinário muitos hinos tradicionais de grande valor, como "Castelo Forte", "Santo, Santo, Santo", "Noite de Paz", entre outros. Porém, alguns dos hinos tradicionais tão apreciados por tantos contêm algumas ideias que entram em franca contradição com os valores do Reino e o evangelho de Jesus. E aí vale a pena observar o conselho de Paulo: "Examinem tudo e retenham o que é bom". Com o passar dos anos, acabamos por aceitar como verdades indiscutíveis coisas que cantamos ou ouvimos repetidas vezes. Aliás, cantar é um ótimo recurso para o aprendizado, amplamente utilizado por Martinho Lutero, John Wesley e muitos outros.

    Isso sem falar nos hinos patrióticos, comumente usados para difundir ideais políticos e muitas vezes para manipular massas. É interessante que acabamos por aceitar afirmações tão absurdas, simplesmente por que a repetição exaustiva nos rouba a capacidade de raciocínio. No caso do hino citado, trata-se de uma adaptação feita por um missionário americano que trabalhou na Amazônia durante cerca de 45 anos, Justus Henry Nelson (1849-1937). Na realidade ele baseou-se na letra de uma canção popular americana e utilizou a música na íntegra. A canção intitula-se "Old Folks at Home", também conhecida como "Swanee River", composta em 1851 por Stephen Collins Foster (1826-1864). Constitui-se atualmente no hino oficial do estado da Flórida. Aqui no Brasil é muito conhecida a música "Oh, Susanna" do mesmo compositor que, felizmente não foi transformada em hino (não porque eu esteja de alguma forma desmerecendo seu valor, mas porque seria, no mínimo, engraçado). Foster foi considerado pelo compositor Aaron Copland como um herói nacional cuja simplicidade e naturalidade inspiraram e definiram a música americana (*). Ouvir as músicas de Foster é como ouvir os hinos dos nossos hinários tradicionais. O mesmo ritmo, a mesma batida, os mesmos encadeamentos harmônicos, as mesmas modulações. Extremamente familiar para quem cresceu numa igreja tradicional. Inclusive dele eram algumas das músicas que ouvíamos nos desenhos animados quando éramos crianças, minha irmã e eu, e não hesitávamos em correr entusiasmadas chamando a mamãe para dar-lhe a boa notícia: "Mãe, o Pernalonga está tocando ao violino o hino da igreja!". Interessante, porque era uma "música do mundo" (de onde mais poderia ser?), pelo menos para os americanos que conheciam suas raízes populares. Equivaleria a cantar "Aquarela do Brasil" ou "Tico-tico no Fubá" com letra adaptada em nossos cultos sacros, pois que não eram profanos. Aliás, há muita música popular brasileira que poderia perfeitamente ser colocada na categoria de salmo e muito hino que deveria ser banido do repertório tido como evangélico.

    A letra adaptada por Nelson reflete a teologia vigente da época (final do século XIX e começo do século XX), que em nossos dias vem sofrendo uma reviravolta, graças ao mover do Espírito Santo. Já não nos cabe mais aceitar determinadas ideias. O que me causa admiração é que nossas músicas não acompanhem nossa visão do Reino de Deus na velocidade em que deveriam fazê-lo. Acabamos por nos apegar demais aos nossos velhos hinos e cânticos, em detrimento da mensagem que deveríamos estar cantando. Mas há sempre excelentes músicos e compositores entre nós, basta termos olhos e ouvidos para encontrá-los.

    Infelizmente, por falta de discernimento e informação, pasmem, este hino ainda é cantado em algumas das comunidades cristãs. É só fazer uma rápida pesquisa na internet que ele está lá para quem quiser ouvir, sob o título de "Saudade", ou "O Exilado". Seria bem melhor que fosse cantado com a letra original, em inglês mesmo. Seria inofensivo e cultural. E, além disso, bem mais compatível com os ideais do Reino. Quer mais?

Roselena Landenberger

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

UMA E OUTRA PESSOA

Foto: Raquel Landenberger

     Quando você perceber o som familiar de batidas suaves à sua porta – pois ele sempre está à porta, mas nem sempre é percebido – se você puder percebê-lo, faça o que for possível para minimizar os ruídos de sua alma. Desligue a TV, fique off-line, ative o celular no modo silencioso. Desça o pano sobre os pensamentos que insistem em não sair de cena, faça com que as vozes interiores diminuam o volume gradativamente até o ponto de se calarem. Guarde seus livros na estante, descarte qualquer arma de defesa, desligue o alarme.

     Com passos calmos, aproxime-se. Feche os olhos e encoste a orelha na porta para tentar discernir a voz que murmura palavras ao seu coração. Seja lá o que estiver a dizer concentre toda a sua atenção no nível máximo.

     Gire a chave, mova a fechadura puxando-a suavemente para que a porta se escancare de leve, ao som de um ranger quase imperceptível e deixe que aos poucos o que é externo se torne interno. Que essa presença inunde sua morada de forma aconchegante, perturbadora e inesperada.

     Prepare o ambiente. Estenda sobre a mesa uma toalha de linho branco, ornamentada com bordados cuidadosamente traçados. Retire a melhor louça do armário e arrume-a sobre a toalha juntamente com os talheres de prata e as taças de cristal. Acenda as velas, coloque um arranjo de flores silvestres de diversas cores.

     Convide-o para sentar-se à mesa. Sirva-lhe o que você tiver de melhor na despensa. Dê-lhe tempo para falar. Colha as lágrimas que vertem pelas faces do visitante em sua própria taça e beba este líquido amargo. Mastigue lentamente o pão seco que ele trouxe na mochila e aproprie-se deste sofrimento. Olho no olho, sem sombra de condenação nem qualquer tipo de imposição.

     Surpreenda-se ao acolher esse hóspede inesperado. Você pensou que fosse Jesus, mas era seu irmão. Você pensou que fosse seu irmão, mas era Jesus.

Roselena Landenberger
 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

RADAR


Meus gemidos mais imperceptíveis,
Ele capta.
Minhas orações impronunciadas,
Ele responde.
Minhas lágrimas contidas,
Ele conta.
Meus desejos mais secretos,
Ele desvenda.
Meus pecados mais escabrosos,
Ele esquece.

Minhas canções incompletas,
Ele ouve até o fim.
Minhas frases mal escritas,
Ele lê além das letras.
Minhas falhas de caráter,
Ele já vê corrigidas.
Minhas potencialidades,
Ele as vê multiplicadas.
Minhas vis limitações,
Ele as usa como remédio
Contra o meu Ego insistente
E meu orgulho opressor.

Doce é sentir-me
Ininterruptamente rastreada
Pelo seu gracioso olhar
Que percorre o mundo todo
Acreditando que um dia seremos
O que um dia ele sonhou que seríamos
Por conta do seu amor.

Roselena Landenberger

domingo, 9 de janeiro de 2011

VIAGEM DE UM DIA

foto: Raquel Landenberger


     Fitou o horizonte incerto e inacabado e sentiu o coração murchar. A estrada longa e árida rumo ao infinito sumia na linha que separa terra e céu. Suspirou profundamente sentindo que nunca chegaria, que por mais que tentasse, por mais que o tempo se transformasse em décadas, séculos e milênios, nunca atingiria o seu objetivo. Ajoelhou-se na poeira da estrada, com as lágrimas tingindo-lhe as faces, desenhando trilhas no deserto de sua alma. Quanto tempo havia ficado ali, parado, contemplando os contornos horizontais tão inatingíveis? A vida se arrastando na monotonia da paisagem sempre igual, a motivação minguando como plantação castigada pelo sol escaldante.

     Olhou para si mesmo. Suas vestes rotas e sem cor, seu estado deplorável, seus pés cansados e machucados, suas mãos ressecadas em súplica, elevadas aos céus. Não conseguia pronunciar palavra. Não sabia mais orar. Seus pensamentos rodavam em turbilhão e vez por outra formulavam uma frase entrecortada. Não tinha mais forças, nunca chegaria, não conseguiria mais por si mesmo, tudo estava tão distante. Seu Mestre caminhara à frente por léguas infinitas e ele nunca mais conseguiria alcançá-lo. Quedara-se ali solitário, vítima das distrações da vida, da rotina, do trabalho, dos afazeres e sentia que sua situação era irreversível.

      Tudo começou quando não tinha mais tempo para sentar-se na varanda à tardinha com o Mestre e colocar em suas mãos todo o peso que sua alma havia acumulado durante o dia para sair leve e livre, pronto para uma noite de descanso profundo. Pela manhã os tantos e-mails que tinha para responder, as mensagens para checar e enviar no twitter, os sites para pesquisar e tudo o mais que era preciso fazer antes de adentrar seus compromissos diários impediam-no de separar um tempo para sentar-se à mesa com o Mestre e receber dele o alimento que mata a fome da alma e que o sustentaria pelo restante do dia. Tarde da noite sempre havia algo interessante para ver ou fazer e em seguida o sono pesava-lhe nas pálpebras, e se o Mestre o convidasse para uma conversa mais profunda à meia voz no ambiente aconchegante da sala enquanto todos os demais estivessem dormindo, ele desculpava-se por estar tão cansado, dirigia-se pesadamente para o quarto, caía na cama e de pronto já engrenava no sono. Desculpe, Mestre, uma outra hora.

      Conforme o tempo foi passando as conversas com o Mestre foram rareando até que cessaram por completo. O rumo de sua vida foi se apagando. A fumaça encobriu o céu, a neblina descoloriu a estrada. Embrenhou-se sozinho pela vida, tateando atalhos e pouco a pouco se sentiu morrendo por dentro. Até que ele acordou do seu torpor e como o filho perdido do evangelho de Lucas, sentiu o desejo de voltar. Foi nesse ponto da história que o encontramos. Desfigurado, ferido, velho e cansado. Voltemos ao início e vamos vê-lo de joelhos, suplicante, desesperançado e trôpego. Quanto tempo levaria para alcançar o Mestre? Quantos anos, décadas, séculos? Tentaria pelo resto da vida, mas nunca chegaria. A eternidade era para ele inatingível tanto quanto o horizonte que sumia na distância. A viagem parecia-lhe tão longa e custosa que ele não tinha coragem para dar sequer o primeiro passo.

     Abaixou os braços, encolheu os ombros, soltou o peso da cabeça deixando-a pender em total desalento. Abandonou o corpo sobre si mesmo e entregou os pontos. Nesse momento sentiu um toque suave e alentador em seu ombro e levantou a face em direção ao interlocutor. O Mestre! Filho, você sabe quanto tempo leva para me alcançar e para voltarmos a ter a comunhão que tínhamos antes? Silêncio. Apenas um dia, filho. Um dia de cada vez. Em seguida o Mestre estendeu-lhe a mão para ajudá-lo a levantar-se e seguiram lado a lado caminhando até o por do sol.

Roselena Landenberger

domingo, 2 de janeiro de 2011

O VIOLINO QUE PAROU DE TOCAR

foto: Roselena Landenberger

    Havia um violino que vivia tocando belas melodias. Amava reunir-se com seus amigos para juntos descobrirem novos sons, experimentarem novas harmonias. Aos domingos iam ao parque e juntavam-se a um grupo de cantores que se deliciavam com o som das cordas e dos sopros acrescido ao seu canto. Um dia, juntou-se ao grupo uma frequentadora que não sabia cantar. Ela não cantava porque vivia numa dimensão onde os sons não eram captados, e como ela não os podia perceber não tinha como reproduzi-los com sua voz. Sentava-se silenciosamente ao lado do violino e ficava observando, alheia a todos os sons. O violino sentiu-se profundamente tocado pela presença daquela senhora idosa que nunca poderia experimentar as alegrias e emoções de uma peça musical. A música para ele era a própria vida. Como poderia respirar se lhe fosse tirada a capacidade de usufruir deste elemento vital?
    Aquilo ficou martelando nas suas cordas como um pizzicato contínuo. Alguma coisa tinha que ser feita. Conversou com alguns amigos sondando a possibilidade de alguém vir a fazer algo pela nova amiga, pois ele estava sempre tão ocupado estudando novos sons. Mas ela não lhe saía do pensamento. Às vezes chorava sozinho pensando em como seria doloroso viver naquela dimensão silenciosa, e enquanto as lágrimas vertiam em sua alma suas melodias foram se transformando de "adagio com expressão (lamento)" em "andante com moto". Percebeu então que sua nova amiga não podia cantar, mas podia dançar.
    Aos poucos foi ganhando braços e mãos com mil possibilidades de movimentos. Em seguida ganhou pernas e pés para poder se locomover mais facilmente. Ocorreu-lhe que podia aprender a dançar e matriculou-se num curso de dança. Conheceu uma comunidade inteira que vivia na mesma dimensão que sua amiga do parque e entusiasmou-se a tal ponto que perdeu a noção do tempo. Enquanto aprendia um sem número de passos novos, a vida desvendava alguns dos mistérios de sua própria alma.
    Dançou tanto tempo mergulhado em silêncio que se esqueceu das antigas melodias... Até que um dia descobriu que estava em plena transformação. Sempre estivera, mas não havia se dado conta da extensão de tal fenômeno, até descobrir que suas antigas cordas, já um pouco enferrujadas pelo desuso haviam se multiplicado... Magia... Seu arco transformara-se em 88 pequeninos martelos. Seu corpo de madeira foi se esticando numa impressionante metamorfose... O violino se transformara num elegante piano de cauda. No fundo, era o que sempre sonhara...
    Depois deste fato curioso, aconteceu que o antigo Violino descobriu que tinha afinidades também com outros teclados e começou a dedilhar as teclas do seu computador para tentar escrever pensamentos e registrar impressões...
    Que outras surpresas a vida não lhe trará?
Roselena Landenberger