segunda-feira, 30 de agosto de 2010

PARTIDA E REGRESSO



Beijou-me a face
(Senti seu perfume)
Abriu a porta, puxou a grade
Fechou tudo e se foi.
Bateu o portão
(Ouvi seus passos)
Saiu tão mansa, não olhou para trás
Pôs os pés na estrada e se foi.

 
Quando a noite cair
E o cansaço se abater por dentro e por fora
Quando o ônibus partir
E a viagem de volta começar
Ainda estarei aqui.
 

Baterá o portão
(Ouvirei seus passos)
Puxará a grade, abrirá a porta
Cansada e com fome
Feliz e realizada.
Subirá a escada
(Sentirei sua presença)
Quando descer
Sentaremos à mesa
E celebraremos como nunca
Com o coração pleno de gratidão.
Tantos anos se passaram
Mas faremos de conta que foi só um dia
Porque ela voltou,
Ela voltou.

 
Roselena Landenberger

 

CONFISSÃO



 

Mestre, faz tanto tempo
Que eu não venho aqui e me sento
Mestre, faz tanto tempo
Que eu não venho aqui e descanso
Minha cabeça no teu colo amigo
Faz tanto tempo que não ficamos os dois em silêncio
Até que a tua mão me toque
E me cure e me salve de mim.
Faz tanto tempo que eu não fico assim
Suspensa no tempo e no espaço
Entregue, largada no teu regaço.
Faz tanto tempo que não procuro o teu olhar
Que me derrete por dentro e que me faz chorar
Faz tanto tempo que não busco escutar
A tua voz que me faz diferente
Faz tanto tempo que não sinto
O teu respirar junto ao meu peito
Que compassada e ternamente
Sopra em mim e muda a minha mente
E me conforma a ti tão somente

 
Quando foi que o meu amor por ti
Tornou-se assim tão pequeno
Esfriou-se, e por fim encolheu?

 
Enquanto derramo estas palavras
Na tela do meu notebook
Vejo tuas mãos estendidas
Sinto teu olhar acolhedor
Ouço o silêncio do teu amor
Que sem palavras me diz:
"Sempre é tempo, sempre é tempo..."

 
Roselena Landenberger

 

domingo, 29 de agosto de 2010

FOLGUEDOS FORA DO TEMPO


 
    Tenho na parede da cozinha um relógio peculiar. Em formato de um cadeado dourado ele possui como pêndulo uma enorme chave prateada. Quando eu me esqueço dele, a chave ganha vida e como uma criança travessa começa a girar em torno de si mesma... Aos poucos a trava do cadeado se solta e a portinhola redonda de vidro abre-se sorrateiramente ao som de um rangido discreto. Vão saindo como pássaros recém libertos da gaiola os números em grande alvoroço. Em seguida o ponteiro vermelho dos segundos salta como se houvera sido encurvado por uma força externa e lançado para longe, seguido pelos dois ponteiros pretos em ordem de tamanho, cada um por sua vez.
 
    Começa a festa. Os números brincam de ciranda, cantando alegre e ritmadamente suspensos no ar. Os ponteiros divertem-se num esconde-esconde e a chave dança brincalhona até sair saltando em malucas cambalhotas. Onde antes os números jaziam inertes no seu pano de fundo monótono e sem graça projetam-se imagens coloridas de lugares nunca vistos numa tela circular pirotécnica, com suas cores e luzes piscantes.

    Para nós que vivemos do lado de cá, o lampejo da eternidade acontece dentro do tempo e aos poucos caio de para-quedas num lugar bem conhecido. Neste exato momento cessam as danças e os folguedos. Automaticamente todos os moradores recolhem-se aos seus respectivos aposentos dentro do velho relógio de parede, pois percebem a minha aproximação como alguém que está preso no cadeado dourado do tempo.

    É hora de cumprir mais um compromisso.
   

Roselena Landenberger


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O DEUS DOS MEUS PAIS x O MEU DEUS


    Quando o seu Deus tornou-se o meu Deus, Ele despiu a toga pesada e escura da lei e vestiu-se com o manto translúcido da graça.

    Abandonou o antigo refrão, o cantochão, o hino austero e entoou escalas proibidas em ritmos não sacramentados. Deixou o som majestoso dos órgãos com seus tubos ecoando poder nas abóbodas das catedrais e misturou-se com o povo nas praças e salões, no forró e no arrasta-pé, entre sanfonas, triângulos e zabumbas. Colocou de lado a pedaleira em semicírculo na penumbra da luz pálida do sol tentando adentrar os vitrais e ensaiou uns passos de samba no burburinho das ruas acotovelando-se entre afro-descendentes.

    Quando o seu Deus tornou-se o meu Deus, Ele reconciliou o sacro e o profano, o cristão e o mundano, os coros eruditos e as violas caipiras, as orquestras sinfônicas e as big bands, os corais de Bach e as rodas de samba, os negro spirituals e a bossa nova, os hinos e os rocks, os santos e os pecadores.

    Vestiu-se de singeleza, falou a língua do povo, varreu as ruas, subiu o morro, tocou pandeiro e cuíca, cantou, bateu palmas e dançou na roda. Acolheu os velhos, ouviu histórias, pulou amarelinha, jogou futebol, sorriu e chorou.

    Não quero o Deus de outrora, que habita os templos distantes e frios, que tem a mão pesada e o olhar carrancudo. Quero o Deus de agora, que é Rei disfarçado, cuja mão abraça e afaga, que é Criador de todo tipo de arte e aceita toda forma de louvor, um Deus alegre e brincalhão, o Deus da graça escandalosa.


Roselena Landenberger

domingo, 15 de agosto de 2010

UM DEUS SOB MEDIDA

  Lamentavelmente costumamos conceber Deus de acordo com aquilo que queremos pensar e ser. Ele será nossa arma de defesa, nossa testemunha, nosso álibi para provar quão certos estamos a respeito de nossas "guerras santas", sejam elas quais forem. Nesse caso, o nome de Deus poderá ser usado com o propósito de derrubar argumentos com os quais não concordamos. Como não conseguimos conviver facilmente com paradoxos acabamos por escolher um dos lados da contenda - aquele que melhor nos convém - e de lá fuzilamos com nossas palavras e com nossas citações bílbicas (só as que justificam nossas ideias) quem pensa de modo diverso. Na maioria das vezes a celeuma gira em torno de Deus. Mas por debaixo de todo esse cenário, no fosso, onde o olhar da plateia não alcança, estamos a descoberto. Na nossa intimidade não temos o figurino e a maquiagem que tão bem servem para disfarçar propósitos que acabamos por não conseguir vislumbrar, devido à bruma que se levanta em torno e dentro de nós mesmos.

        Há um Espírito que sonda todas as coisas e só ele tem o direito e a autoridade de desvendar os mistérios da alma humana. Um Espírito tão santo e gentil, tão respeitoso e educado que nada fará sem o nosso consentimento. "Eis que estou à porta..." Ele não nos condena na nossa humanidade. Ele nos torna realmente humanos. Interpretamos o termo humanidade como sinônimo de fraqueza e nossa tendência é ressaltar sua face caída e deturpada. Mas a humanidade que Deus criou e restaura a cada dia em nós não é algo que diminua quem quer que seja, muito pelo contrário, é plenamente digna. Digamos que a humanidade é divina. Só um Deus insondavelmente grande se tornaria servo. Só um Deus que é amor poderia estabelecer uma parceria com o ser humano, chamá-lo para si, tomá-lo por filho. Só um Deus com "D" maiúsculo se tornaria humano.

      Quando Deus resolveu arcar com todas as consequências de uma parceria conosco, seres humanos, foi preciso que ele retrocedesse, e muito. Aí transparecem, resplandecentes, toda a sua glória e todo o seu poder, que são a sua bondade e o seu amor. Em proporção imensuravelmente menor, seria como o amor de um pai ou de uma mãe que se abaixa para poder olhar seu filho de frente, que simplifica sua linguagem a fim de que ele possa compreender, que diminui o passo para que o filho possa acompanhar. Deus diminuiu o passo para que nós pudéssemos acompanhá-lo. Ele nos deu privilégios e responsabilidades, poder de decisão em muitas esferas da nossa vida, assim como bons pais fazem para com seus filhos, para que possam crescer e amadurecer. Deus não espera que sejamos filhos inseguros, doentiamente dependentes, que fiquemos perguntando o tempo todo o que ele quer que façamos. Isso não é sinal de fraqueza, muito pelo contrário. É prova de uma grandeza indescritível, levando em conta a disparidade absurda em que nos encontramos em relação a ele. Um Deus que vem ao nosso encontro, que fala a nossa língua, portanto, um Deus que impõe a si mesmo limitações, por amor. Se acharmos que isso diminui Deus (nada e ninguém poderia fazê-lo, pois isso é impossível), então já não será suficiente ressaltá-lo como Senhor e Soberano. Ele há de ser déspota.

      Dessa forma, concebemos Deus segundo a nossa prepotência. E referirmo-nos a Deus como déspota na ânsia de declarar a sua majestade e soberania, afirmando-o com ufania e respaldo bíblico, é esquecermo-nos de que esse mesmo Deus exerce sua autoridade e senhorio através das lentes do amor. Mesmo levando-se em consideração a origem da palavra no grego com o simples significado de "senhor, dono", hoje essa mesma palavra tomou outra configuração. Ser déspota é ser cruel, desumano. O déspota julga e condena o inocente, sem sequer ter provas. O déspota não vê a vida de uma pessoa como um todo, ele confisca a esmo apenas algumas palavras proferidas por alguém, geralmente uma pessoa conhecida e admirada, de inteligência e qualidades invejáveis. Ele cita frases da suposta vítima totalmente fora de contexto, interpretadas de forma equivocada, pinça palavras escritas a respeito de uma experiência pessoal e intransferível vivenciada em profundidade que não nos cabe aquilatar ou julgar, para tirar conclusões que lhe sejam favoráveis. Com algumas poucas citações o despótico afirma muitas inverdades a respeito do que tal ou tais pessoas pensam e ensinam, na tentativa de jogá-las na lama da infâmia e arrebanhar muitos seguidores desinformados. Usar indevidamente o nome de uma pessoa, criar alcunhas pejorativas para diminuí-la aos olhos de quem quer que seja, rotulá-la, classificá-la com adjetivos indesejáveis são coisas que demonstram insegurança e pequenez.

      Aí está a diferença. Servir um Deus legalista e austero nos leva a tratar o outro na mesma medida. No entanto servir um Deus amoroso, aparentemente fraco por abrir mão das prerrogativas de juiz, aparentemente diminuido por sua ternura e paciência, nos leva a amar o outro, a tratá-lo com consideração, preservando sua honra, respeitando pontos de vista e opiniões diversas. Quando nos relacionamos com um Deus assim não saímos por aí condenando os outros e atirando-lhes pedras.

     Afirmar que Deus é déspota é como pedir licença para que sejamos nós também pequenos déspotas, justificando nossa ira santa contra todos os que têm outras concepções, diferentes das nossas. Excesso de zelo. Essa é uma velha armadilha, um antigo disfarce para todo o tipo de injustiça. Uma negação descarada da graça de Deus. Em nome de Deus.

      Que Deus tenha piedade de nós.


Roselena Landenberger


domingo, 8 de agosto de 2010

CONSOLOS E DESCONSOLOS

“Atenção, senhor passageiro, em caso de saudade: faz um 21”
         
        O adesivo azul saltava aos olhos, colado na parte traseira do encosto da poltrona à minha frente, no avião. A frase era irritante, infiel à realidade em que nos encontrávamos. Nenhum “21” poderia preencher aquele vazio. Nada traria aquela voz de volta. Apenas seus ecos vívidos e distantes ressoavam nas paredes da memória. Naquela manhã de sábado planos e sonhos foram bruscamente interrompidos. A vida nos pregou uma peça e o surpreendente e inesperado nos acometeu. Não o surpreendente e inesperado que enche a vida de sonhos e cores, mas o surpreendente e inesperado que enche a vida de lágrimas e saudade. Quiséramos que fosse um pesadelo e que ao acordarmos tudo estivesse do mesmo jeito de antes. Porém, não fora a vida que nos pregara uma peça, fora a morte. Ela mesma adentrou sorrateiramente os limites da nossa segurança e atacou um dos nossos, subitamente, deixando seu rastro de dor, abandono e profundo pesar.

         Alguns diziam: “Deus o levou”, “Papai do Céu quis assim”, etc, etc, etc... A mesma lenga-lenga de sempre. Falsas palavras de consolo, ou melhor, verdadeiras palavras de desconsolo. Confissões da nossa completa incapacidade de lidar com a dor e a morte. São como um ato falho. Denunciam nossas crenças em um Deus que tem nas mãos um livro da morte, uma agenda negra com dia e hora marcados para a execução de cada pobre mortal.

         Teve até gente – coisa incrível – que veio nos abraçar com uma alegria indisfarçável, sorrindo mesmo. Só faltava nos darem os parabéns: “Ele está no céu!” Vinham em clima de festa de aniversário, só que o aniversariante jazia... Foram tantas palavras jogadas no vazio da alma que acabaram por cair no esquecimento. Graças a Deus!

         Um casal nos abraçou. Ela, enxugando com suas mãos as lágrimas de nossas faces. Ambos, sem pronunciar palavra. Foi quem nada disse quem mais falou. Gestos são fotografias na exposição secreta das lembranças. Olhares e expressões falam diretamente à alma. No completo silêncio. Por isso, temos dificuldade de ouvir Deus. Ele nos fala no silêncio.

         Embora meu sogro mostrasse esculpidas na face inerte as marcas da dor e da luta repentina contra um infarto fulminante, em torno dele havia comentários do tipo: “Ele está bonito”, “Ele está sorrindo”... Por que gostamos de mentir? Por que somos assim tão fracos a ponto de não conseguirmos encarar os fatos como eles realmente são? Terá sido este cristianismo diluído através dos séculos que colocou em nossos olhos óculos de grau inadequado, tornando-nos cada vez mais míopes? Há uma pequena frase nos Evangelhos que diz: “Jesus chorou”. Seria desnecessário explicar que Jesus lamentou profundamente a morte do amigo querido, o qual logo em seguida ele traria de volta à vida. E nós? Não podemos chorar como Jesus? Mesmo sabendo que um dia... um dia Deus trará nossos mortos de volta e muito provavelmente nós mesmos?

         “Ele está cantando com os anjos”, “...está com Deus”. Bem, com Deus e em Deus todos estamos, tanto vivos quanto mortos, mas cantando com os anjos... É possível cantar dormindo? Nosso irmão Paulo disse que dormiremos. Seremos também sonâmbulos? Isto nos soa como heresia? Não está no nosso manual doutrinário? “Que diremos, pois, a estas coisas?”

         Passados três meses, de volta ao lugar que meu sogro deixara vazio, o jardim não era mais o mesmo. Parreiras, bananeiras, coqueiros mostravam sinais de fadiga. Gemiam tristes e murchavam. O jardineiro se fora. Suas mãos ágeis haviam partido sem ter tempo de dizer adeus. Ele não estará mais conosco à mesa, nos encontros de família. Não veremos mais o seu rosto, não ouviremos mais sua voz. Não nos sentaremos mais com ele na roda de chimarrão, não o veremos mais incansável trabalhando, nem tirando sua soneca, nem levando o cachorro para passear, ou melhor, sendo arrastado por ele.

         Não, a morte não é para ser festejada, não é um rito de passagem. É uma perda inexplicável, uma amputação, uma espada que nos fere profundamente.

          Há muito tempo o sábio Salomão escreveu que “há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Tempo para rir, tempo para chorar.” Deixem-nos chorar nossos mortos em paz. 


Roselena Landenberger

domingo, 1 de agosto de 2010

RENDIÇÃO



       Mais um meio do que um fim.

 
     Já pensou nisso?

      A arte, a música, a poesia, a vida, tudo se resume em Deus. Tudo nasce, cresce e morre em Deus, por Deus e para Deus.

     Já pensou no que isso pode significar? A música que você toca hoje é um meio e não um fim. Ela pode ser um simples entretenimento ou um derramar de alegria, pode ser um lamento ou um suspiro da alma, pode ser um cântico de celebração cheio de vida ou um réquiem fúnebre e sombrio. Ela pode ser cantada e jamais ouvida, nem mesmo pelos seus próprios ouvidos. Pode ser que seja única, perdida no tempo e no espaço, um bebê natimorto, ou um jardim de rosas em explosão de cores de graciosidade etérea e efêmera. Hoje floresce, amanhã fenece. Como a curvatura de uma ligadura exposta numa partitura. Um crescendo paulatino que atinge o seu apogeu e suavemente declina-se no poente.

      Quantas vidas você tocou por causa daquela canção que elevou seu coração a Deus naquele cantinho só seu, a portas fechadas, no quarto mais escondido da sua alma?
Quantos sorrisos você repartiu por causa daquele acorde que encadeou-se com aquele outro, aos quais se juntou mais um som novo na arquitetura leve, graciosa e sensível, sonora e festiva, doce teia de harmonia poética entre sons agregados e dispersos, dançantes e reluzentes, macios e contrastantes, duros e dissonantes?

       Quantas lágrimas você já chorou na solidão aos pés de quem tudo criou, sem nada para ocultar a alma nua e crua, enquanto seus dedos percorriam teclas e sua alma procurava um som que a traduzisse até calar-se na exaustão, dizendo:”Basta!”? E nesse ato de rendição o Criador, ele mesmo, vem aperfeiçoar a obra dele, colocando diante de você um espelho cuja luz machuca os olhos, mas cuja verdade se reflete gloriosa e dolorosamente. “Ai de mim, ai de mim...” E enquanto o Criador chora, as lágrimas dele fundem-se às suas tocando o ser que ele criou até que o ser criado sinta em si mesmo o temor, a perplexidade e a profundidade deste momento pungente e exclame finalmente: “Santo! Santo! Santo!...”


Roselena Landenberger