Lamentavelmente costumamos conceber Deus de acordo com aquilo que queremos pensar e ser. Ele será nossa arma de defesa, nossa testemunha, nosso álibi para provar quão certos estamos a respeito de nossas "guerras santas", sejam elas quais forem. Nesse caso, o nome de Deus poderá ser usado com o propósito de derrubar argumentos com os quais não concordamos. Como não conseguimos conviver facilmente com paradoxos acabamos por escolher um dos lados da contenda - aquele que melhor nos convém - e de lá fuzilamos com nossas palavras e com nossas citações bílbicas (só as que justificam nossas ideias) quem pensa de modo diverso. Na maioria das vezes a celeuma gira em torno de Deus. Mas por debaixo de todo esse cenário, no fosso, onde o olhar da plateia não alcança, estamos a descoberto. Na nossa intimidade não temos o figurino e a maquiagem que tão bem servem para disfarçar propósitos que acabamos por não conseguir vislumbrar, devido à bruma que se levanta em torno e dentro de nós mesmos.
Há um Espírito que sonda todas as coisas e só ele tem o direito e a autoridade de desvendar os mistérios da alma humana. Um Espírito tão santo e gentil, tão respeitoso e educado que nada fará sem o nosso consentimento. "Eis que estou à porta..." Ele não nos condena na nossa humanidade. Ele nos torna realmente humanos. Interpretamos o termo humanidade como sinônimo de fraqueza e nossa tendência é ressaltar sua face caída e deturpada. Mas a humanidade que Deus criou e restaura a cada dia em nós não é algo que diminua quem quer que seja, muito pelo contrário, é plenamente digna. Digamos que a humanidade é divina. Só um Deus insondavelmente grande se tornaria servo. Só um Deus que é amor poderia estabelecer uma parceria com o ser humano, chamá-lo para si, tomá-lo por filho. Só um Deus com "D" maiúsculo se tornaria humano.
Quando Deus resolveu arcar com todas as consequências de uma parceria conosco, seres humanos, foi preciso que ele retrocedesse, e muito. Aí transparecem, resplandecentes, toda a sua glória e todo o seu poder, que são a sua bondade e o seu amor. Em proporção imensuravelmente menor, seria como o amor de um pai ou de uma mãe que se abaixa para poder olhar seu filho de frente, que simplifica sua linguagem a fim de que ele possa compreender, que diminui o passo para que o filho possa acompanhar. Deus diminuiu o passo para que nós pudéssemos acompanhá-lo. Ele nos deu privilégios e responsabilidades, poder de decisão em muitas esferas da nossa vida, assim como bons pais fazem para com seus filhos, para que possam crescer e amadurecer. Deus não espera que sejamos filhos inseguros, doentiamente dependentes, que fiquemos perguntando o tempo todo o que ele quer que façamos. Isso não é sinal de fraqueza, muito pelo contrário. É prova de uma grandeza indescritível, levando em conta a disparidade absurda em que nos encontramos em relação a ele. Um Deus que vem ao nosso encontro, que fala a nossa língua, portanto, um Deus que impõe a si mesmo limitações, por amor. Se acharmos que isso diminui Deus (nada e ninguém poderia fazê-lo, pois isso é impossível), então já não será suficiente ressaltá-lo como Senhor e Soberano. Ele há de ser déspota.
Dessa forma, concebemos Deus segundo a nossa prepotência. E referirmo-nos a Deus como déspota na ânsia de declarar a sua majestade e soberania, afirmando-o com ufania e respaldo bíblico, é esquecermo-nos de que esse mesmo Deus exerce sua autoridade e senhorio através das lentes do amor. Mesmo levando-se em consideração a origem da palavra no grego com o simples significado de "senhor, dono", hoje essa mesma palavra tomou outra configuração. Ser déspota é ser cruel, desumano. O déspota julga e condena o inocente, sem sequer ter provas. O déspota não vê a vida de uma pessoa como um todo, ele confisca a esmo apenas algumas palavras proferidas por alguém, geralmente uma pessoa conhecida e admirada, de inteligência e qualidades invejáveis. Ele cita frases da suposta vítima totalmente fora de contexto, interpretadas de forma equivocada, pinça palavras escritas a respeito de uma experiência pessoal e intransferível vivenciada em profundidade que não nos cabe aquilatar ou julgar, para tirar conclusões que lhe sejam favoráveis. Com algumas poucas citações o despótico afirma muitas inverdades a respeito do que tal ou tais pessoas pensam e ensinam, na tentativa de jogá-las na lama da infâmia e arrebanhar muitos seguidores desinformados. Usar indevidamente o nome de uma pessoa, criar alcunhas pejorativas para diminuí-la aos olhos de quem quer que seja, rotulá-la, classificá-la com adjetivos indesejáveis são coisas que demonstram insegurança e pequenez.
Aí está a diferença. Servir um Deus legalista e austero nos leva a tratar o outro na mesma medida. No entanto servir um Deus amoroso, aparentemente fraco por abrir mão das prerrogativas de juiz, aparentemente diminuido por sua ternura e paciência, nos leva a amar o outro, a tratá-lo com consideração, preservando sua honra, respeitando pontos de vista e opiniões diversas. Quando nos relacionamos com um Deus assim não saímos por aí condenando os outros e atirando-lhes pedras.
Afirmar que Deus é déspota é como pedir licença para que sejamos nós também pequenos déspotas, justificando nossa ira santa contra todos os que têm outras concepções, diferentes das nossas. Excesso de zelo. Essa é uma velha armadilha, um antigo disfarce para todo o tipo de injustiça. Uma negação descarada da graça de Deus. Em nome de Deus.
Que Deus tenha piedade de nós.