O adesivo azul saltava aos olhos, colado na parte traseira do encosto da poltrona à minha frente, no avião. A frase era irritante, infiel à realidade em que nos encontrávamos. Nenhum “21” poderia preencher aquele vazio. Nada traria aquela voz de volta. Apenas seus ecos vívidos e distantes ressoavam nas paredes da memória. Naquela manhã de sábado planos e sonhos foram bruscamente interrompidos. A vida nos pregou uma peça e o surpreendente e inesperado nos acometeu. Não o surpreendente e inesperado que enche a vida de sonhos e cores, mas o surpreendente e inesperado que enche a vida de lágrimas e saudade. Quiséramos que fosse um pesadelo e que ao acordarmos tudo estivesse do mesmo jeito de antes. Porém, não fora a vida que nos pregara uma peça, fora a morte. Ela mesma adentrou sorrateiramente os limites da nossa segurança e atacou um dos nossos, subitamente, deixando seu rastro de dor, abandono e profundo pesar.
Alguns diziam: “Deus o levou”, “Papai do Céu quis assim”, etc, etc, etc... A mesma lenga-lenga de sempre. Falsas palavras de consolo, ou melhor, verdadeiras palavras de desconsolo. Confissões da nossa completa incapacidade de lidar com a dor e a morte. São como um ato falho. Denunciam nossas crenças em um Deus que tem nas mãos um livro da morte, uma agenda negra com dia e hora marcados para a execução de cada pobre mortal.
Teve até gente – coisa incrível – que veio nos abraçar com uma alegria indisfarçável, sorrindo mesmo. Só faltava nos darem os parabéns: “Ele está no céu!” Vinham em clima de festa de aniversário, só que o aniversariante jazia... Foram tantas palavras jogadas no vazio da alma que acabaram por cair no esquecimento. Graças a Deus!
Um casal nos abraçou. Ela, enxugando com suas mãos as lágrimas de nossas faces. Ambos, sem pronunciar palavra. Foi quem nada disse quem mais falou. Gestos são fotografias na exposição secreta das lembranças. Olhares e expressões falam diretamente à alma. No completo silêncio. Por isso, temos dificuldade de ouvir Deus. Ele nos fala no silêncio.
Embora meu sogro mostrasse esculpidas na face inerte as marcas da dor e da luta repentina contra um infarto fulminante, em torno dele havia comentários do tipo: “Ele está bonito”, “Ele está sorrindo”... Por que gostamos de mentir? Por que somos assim tão fracos a ponto de não conseguirmos encarar os fatos como eles realmente são? Terá sido este cristianismo diluído através dos séculos que colocou em nossos olhos óculos de grau inadequado, tornando-nos cada vez mais míopes? Há uma pequena frase nos Evangelhos que diz: “Jesus chorou”. Seria desnecessário explicar que Jesus lamentou profundamente a morte do amigo querido, o qual logo em seguida ele traria de volta à vida. E nós? Não podemos chorar como Jesus? Mesmo sabendo que um dia... um dia Deus trará nossos mortos de volta e muito provavelmente nós mesmos?
“Ele está cantando com os anjos”, “...está com Deus”. Bem, com Deus e em Deus todos estamos, tanto vivos quanto mortos, mas cantando com os anjos... É possível cantar dormindo? Nosso irmão Paulo disse que dormiremos. Seremos também sonâmbulos? Isto nos soa como heresia? Não está no nosso manual doutrinário? “Que diremos, pois, a estas coisas?”
Passados três meses, de volta ao lugar que meu sogro deixara vazio, o jardim não era mais o mesmo. Parreiras, bananeiras, coqueiros mostravam sinais de fadiga. Gemiam tristes e murchavam. O jardineiro se fora. Suas mãos ágeis haviam partido sem ter tempo de dizer adeus. Ele não estará mais conosco à mesa, nos encontros de família. Não veremos mais o seu rosto, não ouviremos mais sua voz. Não nos sentaremos mais com ele na roda de chimarrão, não o veremos mais incansável trabalhando, nem tirando sua soneca, nem levando o cachorro para passear, ou melhor, sendo arrastado por ele.
Não, a morte não é para ser festejada, não é um rito de passagem. É uma perda inexplicável, uma amputação, uma espada que nos fere profundamente.
Há muito tempo o sábio Salomão escreveu que “há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Tempo para rir, tempo para chorar.” Deixem-nos chorar nossos mortos em paz.
Roselena Landenberger
Roselena Landenberger
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