domingo, 18 de setembro de 2011

DO OUTRO LADO

Jardim Botãnico, Curitiba, Paraná - foto de Raquel Landenberger
Trago comigo as lembranças
Das músicas que minha mãe não tocou,
Dos sermões que meu pai não pregou,
Das aulas de filosofia que meu avô não ministrou,
Dos livros que minha tia não escreveu.
São remotas, são lembranças,
São sonhos que sonhos ficaram;
São talentos que soterraram
E que a vida não fez florescer.

Trago comigo a saudade
Das notas abortadas,
Das palavras engolidas,
Da sabedoria embutida,
Do romance amordaçado.
Quem sabe no avesso da vida –
Onde as raízes fecundaram –
As obras se eternizaram,
Cresceram, desabrocharam.

No lado contrário do mundo
A menina Escolástica dedilhou o piano
E formou-se professora;
O menino José cresceu entre os livros,
Teve um pai amoroso e uma mãe sempre ao seu lado.
O professor Amador lecionou muitas matérias na Universidade
E defendeu suas teses;
A Bertolina escreveu muitos livros,
Publicou e deu autógrafos.

No negativo da história
Gravou-se outra memória;

Somos muito além das circunstâncias.
 

Roselena Landenberger

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

PESO E LEVEZA




A música cessa –
Irrompe o silêncio.
Estanca-se o som –
Expande-se a alma.

Limiar da dor,
Pranto contido.
Palavras escoam,
Sentido perdido.

Dor latejante
Pulsar insistente
Soluço profundo
Gemido da alma.

Vigília da noite,
Olhar inquietante
Penumbra calada,
Silêncio e deserto.


Exaustão.


Rendição.


Deus cuida de nós.
Não lutamos sós.


Roselena Landenberger

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

CLARA DE LUA


Na sala ampla de amplas vidraças, por sobre o piso sonoro de madeira pisa suave a sapatilha branca, cintila em espiral ao clarão da lua. Brancas são as fitas que enlaçam o tornozelo, branca é a luz que alumia tímida a sala escura. Na penumbra move-se uma figura delicada e arfante em solilóquio pungente; o tule branco da saia quase transparente rodopiando em círculos constantes. Gira mecânico o vinil sulcado, machucado pela agulha que ao ferir arranca a sonoridade profunda das cordas de um piano levemente golpeadas pelos martelos, dos martelos empurrados pelas teclas, das teclas pressionadas pelos dedos, mas é como se os próprios dedos dedilhassem as cordas.

Soam os primeiros acordes surpreendentemente simples. Guardam em si o mistério do desconhecido, prestes a acontecer, qual porta entreaberta que a curiosidade desperta por pouca ou nenhuma pista conter a respeito do interior de um cômodo.
 
Trêmulas impressões arpejadas espelham-se na dança incontida das notas bailarinas que como ninfas enevoadas brotam das fendas do vinil, umas rindo, outras chorando. As riscas no chão tecem linhas e espaços, tentando em vão atrair as ninfas para a inércia de uma pauta e por elas são ignoradas. A moça que baila assim tão atemporal deixa-se levar, chega a ser por vezes alçada por este inusitado corpo de baile e entrega-se, flutuando no ar.

O bailado ganha intensidade. As sapatilhas cravam sulcos no chão, desenham bordados e invisíveis quadros. A rede de prata crivada de pérolas brancas tenta encerrar os cabelos de âmbar; alguns delicados fios escapam para ensaiar um vôo entrelaçados aos atraentes raios do clarão da lua.

A cada novo colorido um novo passo de entrega; o envolvimento vai tomando tal proporção que a música e a moça tornam-se partes de uma única composição. Gira o corpo delgado envolto em um corpete branco acetinado, o busto emoldurado por graciosas lantejoulas prateadas. Músculos, tendões, ossos rodopiam; as vísceras contorcidas, o cérebro em redemoinho. A pele branca reveste a turbulência de calma e doce aparência.

Soam os últimos acordes na tentativa de fechar a porta que antes estivera entreaberta e que mansamente fora empurrada por uma brisa suave, revelando o interior do aposento. Porém o perfume que exalou de dentro já está impregnado na sala ampla de amplas vidraças. As ninfas finalmente cedem ao apelo silencioso e abandonam-se à morte, sugadas pelos sulcos das tábuas horizontais. A moça rende-se ao cansaço, estira-se exausta no piso surdo, aconchega-se e adormece.

O horizonte aos poucos vai enrubescendo, a lua se recolhe sonolenta e pálida. Gira em falso a agulha no centro da vitrola, esquecida e rouca, bailarina de si mesma, repetindo sempre o mesmo rodopio.

Ainda escondidas nas obscuras frestas do piso ressoam as notas do Claire de Lune. Ainda de dentro do olhar denso sorri enigmática a face etérea de Claude Debussy. Acima de si. Pleno de si. Submerso inteiramente em si.

Roselena Landenberger


domingo, 26 de junho de 2011

GESTAÇÃO

      
       Recolhi-me à minha insignificância, ao meu silêncio, à minha dor, à minha impotência, ao meu fracasso. Senti tua presença a debruçar-se sobre mim como um manto etéreo, além de toda a minha capacidade. Tua graça não depende do que sou, nem do que faço.

            Sou feto mergulhado no profundo mar do teu afeto. Sinto teu coração, tua pulsação, consciente e inconscientemente. Ouço o som do teu mover como órgãos difusos sussurrando canções nas mais profundas grutas do universo, onde o gotejar da tua graça é constante a criar catedrais eternas no espaço. Invólucro que me envolve e revolve o âmago. Semente prestes a brotar. Sobe-me o cheiro da chuva. Réstias de sol no horizonte. Sinto-me tão pequenina diante de uma alvorada infinita. Vislumbro sombras e contornos.

            Um antigo salmo ecoa ao longe, envolto em mistério: “Sonda-me, ó Deus...”

Roselena Landenberger

domingo, 19 de junho de 2011

MENSAGEM PARA MEU FILHO


       Vejo em seus olhos o brilho da curiosidade infantil e a profundidade do amor. Ouço em seu riso as canções que tocam meu coração. Posso observar você abrindo as comportas da vida e libertando represas de contentamento. Sinto sua vivacidade rara irradiando luz pelo caminho. Ondas de afeto invadem a casa através de seu olhar travesso. A expressividade e a contundência de seus gestos e palavras pintam os ares de festa e inundam o ambiente com sua criatividade e seu humor.

          Gostaria de aninhá-lo em meus braços para sempre, mas não posso. Você não cabe no meu abraço. Deus fez você para iluminar o mundo a passos largos. E enquanto ouço seu riso ecoando à distância no amanhã que se prenuncia, guardo no peito mil consolações.

Roselena Landenberger

terça-feira, 7 de junho de 2011

SEMENTE DO REINO



Sementinha pequenina,
De onde foi que ela surgiu?
Qual a mão misteriosa
Que a plantou e ninguém viu? 

Na calada e densa noite
Deste mundo tão hostil
Nasce a verdadeira fonte
De uma graça tão gentil. 

Cresce silenciosamente
Se alastrando suavemente,
Ganha força e então se estende -
Seu domínio é permanente. 

Majestosa árvore
Cujas verdes ramas
Dão abrigo a toda ave
Ao frescor de suas sombras.

Não há quem possa deter

Tal poder e tal ação
Que se espalha mansamente
Sem qualquer ostentação. 

Assim é o Reino de Deus. 
 
Roselena Landenberger

domingo, 17 de abril de 2011

ABRAÇO E SUSSURRO

    
   Há experiências tão marcantes pelas quais passamos, sentimentos intensos, profundos alicerces nas raízes do ser, pedras de preciosidades nos garimpos da alma... São tão delicadas sensações, mas ao mesmo tempo tão fortes, que abalam nossa estrutura humana e frágil.

    Então me calo e perscruto o insondável até que o pensamento suspire exausto. "Minha alma descansa somente em Ti".

    Aninho-me em teus braços paternos, braços de um amor inexplicável. Suspensa no tempo e no espaço, ouço tua voz ecoando internamente, num doce sussurro: "Filha minha, com laços de ternura a envolvi... Com amor eterno amei você... Meu amor é mais forte do que a morte... Estou com você todos os dias, todos os dias, todos os dias..."

    Fecho os olhos e ouço em silêncio. Entrego-me ao teu abraço e descanso, sentindo na alma o pulsar de um coração que verdadeiramente sabe amar.

Roselena Landenberger

domingo, 3 de abril de 2011

SANTA BAGUNÇA

 
    Salve a santa bagunça, a desorganização!

    Você queria que nós fossemos programáveis, cães amestrados, mas nós somos gente de carne e osso, com sangue nas veias. Gente com tudo o que gente é. Gente com garra, com vontade própria, que escolhe, que compra, que vende, que tem seu próprio jeito de fazer as coisas. Gente que tem gostos, preferências, paladares, que funciona em dias, horas, estações diferentes, cada qual a seu tempo. Gente que não tem chip, que não obedece regras estúpidas, que não é certinha, que fala o que pensa, que pensa o que fala. Gente que quer ser livre, gente que ama viver. E amar a vida é saber conviver com as diferenças. Na morte tudo é igual. O mesmo vácuo, a mesma ausência, a impossibilidade de sentir, de querer, de expressar. Que me desculpe o poeta, mas "se todos fossem iguais a você, que porcaria viver."

    Por isso, salve a santa bagunça, a desorganização! Assim vamos aprendendo a conviver, a ser gente, a amar, esperar e perdoar na mesa da comunhão.

Roselena Landenberger

quinta-feira, 24 de março de 2011

DEREK


    Derek era um cão muito lindo. Pelagem clara em tom pastel, quase branca, de uma cor uniforme por todo o corpo. Sua cauda peluda balançava alegremente saudando toda e qualquer pessoa. Um cão grande, imponente, com alma de criança. Os olhinhos infantis de tom castanho brincavam no centro da carinha meiga. Não latia, só fazia festa. Gostava de saudar as pessoas com seu longo abraço canino, sujando-lhes as roupas. As orelhas eretas e triangulares, levemente arredondadas traziam manchas escuras nas pontas, talvez pelo excesso de sol. Uma grossa coleira de couro o prendia através de uma corrente para que não derrubasse ou incomodasse as pessoas com suas demonstrações calorosas de afeto. Parecia ter algum ancestral de alguma raça nobre, com seus ares de lobo branco.
 
    O solícito grande cão olhava sonhadoramente pelas grades do pátio gramado e observava os passantes na estradinha de terra recoberta de pedrinhas. Ah! Uma senhora de cabelos prateados com sua sacolinha de compras... Deve morar numa casinha aconchegante, com uma varanda onde ela coloca uma cadeira de balanço na qual se senta e vai puxando um fio colorido e divertido ao som do tique taque de duas agulhas compridas que não param de dar nós infindáveis, não se sabe ao certo para quê. Mas, parece tão interessante. Aos pés dela Derek se deitaria, aninhando-se confortavelmente sobre um grande tapete de crochê feito de barbante, em tom cru. Derek e o tapete se confundiriam por serem da mesma cor e a boa senhora sorriria de prazer ao vê-lo tão belamente emoldurado.
 
    Mas, eis que vem mais alguém pelo caminho. Ah! Uma mãe com duas crianças pequenas pulando e cantando, brigando e chorando, tudo ao mesmo tempo... Devem morar na próxima curva da estrada. Ao meio dia as crianças, um menino e uma menina, brincam com a bola sob as sombras das árvores. Da cozinha vem um cheiro agradável, onde a mãe prepara uma deliciosa refeição. As crianças resolvem brincar de amarelinha e pulam perfazendo dezenas de vezes o caminho entre céu e inferno. Derek correria para pegar a bola, pularia ao redor da amarelinha e, quando o pai atravessasse o pequeno portão seria recebido com festas pelos três brincantes. Derek receberia um agrado e um osso que ele guardaria com todo o cuidado, enterrando em alguma parte do quintal para ser degustado em momento mais oportuno.
 
    De repente, vem atravessando a estrada um homem alegre e brincalhão. Ele se dirige ao cão após entrar na área em que este se encontra. O cão fora colocado ali para guardar o local, mas certamente sua vocação não era para cão de guarda. Recentemente alguns rapazes bêbados haviam invadido a chácara de madrugada, e Derek nem deu alarme. Pelo contrário, recebeu-os com muita alegria abanando o rabo o máximo que podia. Afinal, adorava companhia.
 
    Derek ficou tão feliz em receber aquele homem que nem percebeu que este mudara o seu nome, e isso já fazia um bom tempo. Assim que o homem aproximou-se do cão, foi recebido com muita efusividade e, revelando em uma palavra tudo o que ele pensava a respeito do nobre cão, chamou-o de "Bobalhão".
 
Roselena Landenberger

domingo, 13 de março de 2011

EXPANSÃO


     Não deixe que seu coração fique assim tão apertado, tão pequeno. Permita que ele se alargue, que se expanda. Que dentro dele possam caber também as mazelas das pessoas, o lado obscuro e sombrio de quem você ama. Deixe que o amor o invada, que flua em você como sangue, que é bombeado e direcionado a todas as partes do seu corpo. E que nesse fluir possam ser varridas palavras e atitudes que por um breve período de tempo você permitiu que o ferissem.

    Ignore as ofensas. Seja sábio como Salomão. Às vezes alguém lhe diz uma palavra ruim. Não deixe que isso envenene todo o vinho doce e puro de tudo o que essa pessoa representa para você. É apenas uma pequena gota amarga que rapidamente se dilui em todo o conteúdo precioso que representa um ser amado, sem preço, por quem você daria sua própria vida, se necessário fosse. Se a flecha que fere for desferida por alguém que lhe é um mero conhecido, ou até um desconhecido, pense no sacrifício que tal pessoa custou para Deus, no preço infinito que ele pagou por esta vida.

    Jogue fora. Ignore os cochichos nas concavidades sutis da sua alma, venham de onde vierem. Não dê ouvidos a quem não merece nem um milésimo de segundo da sua atenção. Permita-se ser curado. Ouça o som da Voz suprema que permeia o universo, que tudo sustenta, que permite que vínculos de amor inundem nossa vida, que usa pessoas e circunstâncias como santo remédio, muitas vezes amargo, sorvido com boa dose de humilhação. A exaltação virá a seu tempo, sem pular estágios.

    Pague o preço do perdão. Vale a pena. Aceite as pessoas como elas são. Não compare, cada ser é único. Custa caro deixar-se expandir, mas o prejuízo de encolher-se na própria miséria é eterno.

Roselena Landenberger 

 

domingo, 6 de março de 2011

SALMO 131

Há um bom tempo
Tenho vivido uma vida comum.
Nada de extraordinário,
Nenhuma súbita inspiração.
Como no Salmo cento e trinta e um
Sou criança amamentada
Tranquila, dependente, amada.
Acalanto em cada canto,
Esperança acalentada.


Roselena Landenberger

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

SER CRISTÃO

Já dizia o irmão Tiago:
Quem da Palavra é mero ouvinte
Vive no auto-engano.
É mister ser praticante.

Pois ser cristão é mostrar
A fé na própria conduta,
É viver por uma causa –
Quem é cristão vai à luta.

Sem ter que viver sufocado
A debater-se, enjaulado.
A liberdade floresce
No alívio ao necessitado.

Nem ter que viver limitado
Em busca de um horizonte.
A felicidade se estende
Na direção do carente.

Ser cristão é ter cautela
E as palavras bem medir;
É silenciar a alma
Para "A Voz" poder ouvir.

É calar todo o ruído
Do ego sempre exigente
Para converter-se ao outro
E aprender o que é ser gente.

É ver além da aparência
Gente simples – de oculta glória –
Que sem pompa ou circunstância
Atravessa a nossa história.

É não ser indiferente
E não dizer tão somente:
"Seja Deus quem te abençoe,
Quem te aqueça e alimente".

Ser cristão é discernir,
Sem julgar, nem dar sentença;
É ter palavra de graça
E ser no mundo presença.

Para o nosso irmão Tiago
O fruto da fé é o que importa
Pois dois tipos de fé existem:
Uma é viva, outra morta.

A fé viva é fé ativa
A fé morta é passiva
Fé viva é fé altruísta,
Fé morta é egoísta.

Crer e fazer andam juntos,
Fé e obras de mãos dadas;
Quem crê glorifica a Deus
Pelas obras praticadas.

Ficou fácil descobrir
Quem é sábio e inteligente,
Como é ser cristão de fato:
Ser cristão é ser agente.

Roselena Landenberger

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A SETE CHAVES

foto: Raquel Landenberger
    É difícil crer que por trás de um céu cinza e nublado existe um sol que brilha intenso e alegre suspenso no azul cheio de vida e esperança...
 
    Conheci um sábio com quem muito aprendi que citava uma frase sábia: "Nunca duvides nas trevas do que Deus disse na luz".
 
    Por que deixei que estas nuvens cinzentas tomassem conta do meu coração, quando a Palavra diz: "Alegrem-se!"? Que tipo de paisagem Paulo vislumbrava na prisão? No entanto ele foi o homem que aprendeu a viver contente em toda e qualquer situação.
 
    Por que me entreguei, por que parei de lutar? Será que não sei que os dias são curtos e que a vida se arrasta nestas horas sombrias, quando o tempo precioso vaza por entre os dedos das mãos, faça sol ou não?
 
    O que será que está trancado a sete chaves no mais profundo da alma e que precisa ser desvendado, vir à luz para clarear os caminhos obscuros, por mais que cause dor?
 
    Por que fugir do confronto, deixar rolar, se o tempo urge e hoje é o dia da salvação?

 
Roselena Landenberger

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O SALMO E O DILEMA


    Foi um choque. Uma decepção que rasgou o coração. Isto aconteceu já faz algum tempo. Foi quando "a ficha caiu" e descobri que não somos "especiais". Não somos como objetos raros de altíssimo valor trancados com o mais sofisticado esquema de segurança dentro de uma vitrine de joalheria ou à exposição em algum museu famoso.
 
    Voltei a ler o Salmo 91, aquele que tantos usam como amuleto, deixando a Bíblia aberta, bem à vista de todos como se fora uma advertência: "Cuidado! Perigo! Você pode ser um dos mil que cairão ao meu lado, ou quem sabe, um dos dez mil que irão quebrar a cara no chão bem à minha direita, porque eu sou especial... Sou intocável!"
 
    Nessas idas e vindas ao Salmo 91, os conflitos iam e vinham igualmente, sem solução. Guardei no coração e esperei. Afinal, sempre ouvi dizer que Deus nos protege, Deus guarda seus filhos. Foram tantas as histórias que me foram contadas desde a infância, como a dos ladrões que entraram na casa de uma senhora "muito crente", e simplesmente não conseguiram achar a porta do quarto em que ela se encontrava, mesmo a porta estando bem à frente de seus próprios narizes.
 
    Fui tomada por um sentimento de abandono, de orfandade e desamparo, de decepção com Deus. Por que orar? De que adianta? E os meus filhos? O que poderá acontecer com eles? Estão eles assim tão vulneráveis, tão desprotegidos? As coisas foram perdendo o sentido, e eu sofria calada. À medida que o quebra-cabeça ia se embaralhando, as peças que antes pareciam se encaixar perfeitamente, quando olhadas com maior atenção apresentavam falhas e incompatibilidades. Um vazio doloroso me obrigava a dar meia-volta e começar tudo de novo, da estaca zero. Tive que abrir mão de conceitos antigos e enraizados. Não seria a primeira vez que eu teria de fazê-lo, mas é sempre um processo muito sofrido. É um passo a mais a caminho da cura, porém tem o seu preço.
 
    Novamente me coloquei diante do Salmo 91, desta vez com um anseio mais profundo: "Fala, Senhor". Foi então que algumas palavras destacaram-se do texto e começaram a chamar minha atenção, como num luminoso insistente. Abrigo, fortaleza, laço do caçador, veneno mortal, escudo, flecha, peste, praga, tenda... E por sua vez, estas palavras evocaram em minha mente imagens de antigas histórias bíblicas. Imagens da escravidão no Egito, das dez pragas, da celebração da Páscoa, do êxodo, da perseguição dos egípcios, da peregrinação no deserto, do povo morando em tendas e enfrentando a morte a cada minuto. Certamente o escritor do Salmo vivenciou estes fatos de maneira muito próxima, pois faziam parte da sua história e tradição e foram contados inúmeras vezes, passando de pais para filhos. Há até a possibilidade de este Salmo ter sido escrito pelo próprio Moisés.
 
    Folheei a minha Bíblia e fui parar em Filipenses. Ali Paulo diz: "Aprendi a adaptar-me a toda e qualquer circunstância... Tudo posso naquele que me fortalece." Há uma tradução que diz: "Com a força que Cristo me dá, posso enfrentar qualquer situação." (Fp 4.13 BLH)
 
    Finalmente compreendi os fatos. Foi um aprendizado precioso, que me trouxe grande alívio e paz. Somos filhos de Deus, mas não somos prediletos, mimados, super protegidos, pois precisamos crescer. Toda criança precisa aprender a conviver com a dor em certa medida para que possa tornar-se um adulto saudável. A dor faz parte da vida. Deus não nos quer imaturos e dependentes. Hoje sei que estamos expostos a todo o tipo de perigo diariamente, mas na hora do sofrimento Deus nunca nos abandonará. Confesso que não era assim que eu queria que as coisas fossem, mas isto provém de um sentimento antigo infantil e egoísta de querer ter privilégios, de esfregar na cara dos outros algo do tipo: "Eu sou filha de Deus, você não é... Estou sob proteção, mas você, quem sabe o que poderá lhe acontecer..." Isso é mesquinho e não combina com Jesus. Cristianismo não é isso.
 
Roselena Landenberger

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

SEMENTES DO AMOR

foto: Raquel Landenberger
Quem ama, morre.
O ego agonizante
Suspira fundo e se entrega
Rendido ao sabor do vento.
Que o mesmo vento possa levar
O que há de mais precioso,
Tudo o que a alma encerra
Livre a bailar docemente.

E as lágrimas que virão
Cairão sobre a terra fofa.
As sementes germinarão
E, ao desabrochar da vida,
Palavras e sons brotarão,
E há de surgir um jardim
De alegria, paz e saudade.

Roselena Landenberger

domingo, 23 de janeiro de 2011

484

    Da linda pátria estou mui longe... Por isso não vou me preocupar com o que tem acontecido por aqui, afinal de contas não sou mesmo deste mundo. Um terremoto aqui, outra enchente ali, incêndios, desmatamentos, guerras, chacinas, violência, tudo é cumprimento de profecias. Um verdadeiro apocalipse. Não há o que fazer, está tudo determinado.

    Triste eu estou... A vida fica muito chata quando não pertenço a nada e nada me pertence. É entediante não ter uma causa pela qual lutar. Os dias são uma sequência de deveres e obrigações. Só me resta esperar pelo futuro, pois o presente não vale a pena.

    Eu tenho de Jesus saudade... Pois é, ele está tão, tão distante... É impossível vê-lo na face dos que sofrem, afinal ele era um homem lindo, hollywoodiano, paradoxalmente um ariano, estereótipo de bonitão, loiro, de olhos azuis, mesmo nascendo onde nasceu, barba bem feita, cabelos longos, com aquele olhar de "eu não sou deste mundo", tão limpinho e cheiroso, de vestes brancas e manto azul. E desde que ele subiu às alturas e seus pés foram vistos pela última vez pela frestinha de uma nuvem reluzente não se achou substituto à altura, a não ser, é claro, o Consolador, que anda por aí, mas ninguém sabe ao certo onde.

    Quando será que vou? Ó, mundo cruel, quero morrer, e logo! Assim poderei ir rapidinho para o céu. Não terei mais que trabalhar, sofrer, chorar, ver tragédias na TV, conviver com os pecadores e sua podridão, neste mundo em decadência, cheio de injustiça, corrupção, mensalão, apagão, guerras estúpidas em nome de Deus, etc, etc... Qual a vantagem de viver?

    Passarinhos, belas flores querem me encantar... Xô, passarinho! Você está me distraindo (aliás, aqui na cidade tem tão poucos e são tão pequenos). E as flores inúteis também atrapalham minha vida de santidade. Quero mais, muito mais. Preciso de ruas de ouro, de mansões celestes (no caso de chover...), rio da vida, coroas, harpas, longas vestes. Sem lágrimas, sem espinhos, sem dor. Ô, glória!

    Ó, vãos terrestres esplendores... Por que será que Deus inventou de criar estas coisas vãs e tentadoramente lindas? Deixem que tudo se acabe mesmo! Vou só assistir de camarote com a Bíblia e o Hinário na mão. Por que lutar para tornar o mundo um lugar mais habitável e digno? Para que reciclar o lixo, economizar água, ser solidário, tentar minimizar o sofrimento à minha volta, se tudo vai acabar um dia mesmo? Que canseira!

    Se "aqui não é meu lar" e "avisto no portal um anjo a chamar", se posso em breve estar no céu com todos os que amo, "felizes para sempre", que se dane o mundo. É óbvio que não quero aqui ficar.

     Por isso o mundo está como está. Mas, não tem problema, são apenas vãos terrestres esplendores.

* * *

    Agora, uma breve explicação. As frases em itálico são a transcrição na íntegra da primeira estrofe de um hino que se encontra em um dos hinários mais tradicionais das igrejas evangélicas, com o nome de "Cantor Cristão", sob o número 484. Hinário este, canonizado por muitos e em tempos passados acoplado a algumas Bíblias como se fosse o segundo livro do Apocalipse. Contém este hinário muitos hinos tradicionais de grande valor, como "Castelo Forte", "Santo, Santo, Santo", "Noite de Paz", entre outros. Porém, alguns dos hinos tradicionais tão apreciados por tantos contêm algumas ideias que entram em franca contradição com os valores do Reino e o evangelho de Jesus. E aí vale a pena observar o conselho de Paulo: "Examinem tudo e retenham o que é bom". Com o passar dos anos, acabamos por aceitar como verdades indiscutíveis coisas que cantamos ou ouvimos repetidas vezes. Aliás, cantar é um ótimo recurso para o aprendizado, amplamente utilizado por Martinho Lutero, John Wesley e muitos outros.

    Isso sem falar nos hinos patrióticos, comumente usados para difundir ideais políticos e muitas vezes para manipular massas. É interessante que acabamos por aceitar afirmações tão absurdas, simplesmente por que a repetição exaustiva nos rouba a capacidade de raciocínio. No caso do hino citado, trata-se de uma adaptação feita por um missionário americano que trabalhou na Amazônia durante cerca de 45 anos, Justus Henry Nelson (1849-1937). Na realidade ele baseou-se na letra de uma canção popular americana e utilizou a música na íntegra. A canção intitula-se "Old Folks at Home", também conhecida como "Swanee River", composta em 1851 por Stephen Collins Foster (1826-1864). Constitui-se atualmente no hino oficial do estado da Flórida. Aqui no Brasil é muito conhecida a música "Oh, Susanna" do mesmo compositor que, felizmente não foi transformada em hino (não porque eu esteja de alguma forma desmerecendo seu valor, mas porque seria, no mínimo, engraçado). Foster foi considerado pelo compositor Aaron Copland como um herói nacional cuja simplicidade e naturalidade inspiraram e definiram a música americana (*). Ouvir as músicas de Foster é como ouvir os hinos dos nossos hinários tradicionais. O mesmo ritmo, a mesma batida, os mesmos encadeamentos harmônicos, as mesmas modulações. Extremamente familiar para quem cresceu numa igreja tradicional. Inclusive dele eram algumas das músicas que ouvíamos nos desenhos animados quando éramos crianças, minha irmã e eu, e não hesitávamos em correr entusiasmadas chamando a mamãe para dar-lhe a boa notícia: "Mãe, o Pernalonga está tocando ao violino o hino da igreja!". Interessante, porque era uma "música do mundo" (de onde mais poderia ser?), pelo menos para os americanos que conheciam suas raízes populares. Equivaleria a cantar "Aquarela do Brasil" ou "Tico-tico no Fubá" com letra adaptada em nossos cultos sacros, pois que não eram profanos. Aliás, há muita música popular brasileira que poderia perfeitamente ser colocada na categoria de salmo e muito hino que deveria ser banido do repertório tido como evangélico.

    A letra adaptada por Nelson reflete a teologia vigente da época (final do século XIX e começo do século XX), que em nossos dias vem sofrendo uma reviravolta, graças ao mover do Espírito Santo. Já não nos cabe mais aceitar determinadas ideias. O que me causa admiração é que nossas músicas não acompanhem nossa visão do Reino de Deus na velocidade em que deveriam fazê-lo. Acabamos por nos apegar demais aos nossos velhos hinos e cânticos, em detrimento da mensagem que deveríamos estar cantando. Mas há sempre excelentes músicos e compositores entre nós, basta termos olhos e ouvidos para encontrá-los.

    Infelizmente, por falta de discernimento e informação, pasmem, este hino ainda é cantado em algumas das comunidades cristãs. É só fazer uma rápida pesquisa na internet que ele está lá para quem quiser ouvir, sob o título de "Saudade", ou "O Exilado". Seria bem melhor que fosse cantado com a letra original, em inglês mesmo. Seria inofensivo e cultural. E, além disso, bem mais compatível com os ideais do Reino. Quer mais?

Roselena Landenberger

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

UMA E OUTRA PESSOA

Foto: Raquel Landenberger

     Quando você perceber o som familiar de batidas suaves à sua porta – pois ele sempre está à porta, mas nem sempre é percebido – se você puder percebê-lo, faça o que for possível para minimizar os ruídos de sua alma. Desligue a TV, fique off-line, ative o celular no modo silencioso. Desça o pano sobre os pensamentos que insistem em não sair de cena, faça com que as vozes interiores diminuam o volume gradativamente até o ponto de se calarem. Guarde seus livros na estante, descarte qualquer arma de defesa, desligue o alarme.

     Com passos calmos, aproxime-se. Feche os olhos e encoste a orelha na porta para tentar discernir a voz que murmura palavras ao seu coração. Seja lá o que estiver a dizer concentre toda a sua atenção no nível máximo.

     Gire a chave, mova a fechadura puxando-a suavemente para que a porta se escancare de leve, ao som de um ranger quase imperceptível e deixe que aos poucos o que é externo se torne interno. Que essa presença inunde sua morada de forma aconchegante, perturbadora e inesperada.

     Prepare o ambiente. Estenda sobre a mesa uma toalha de linho branco, ornamentada com bordados cuidadosamente traçados. Retire a melhor louça do armário e arrume-a sobre a toalha juntamente com os talheres de prata e as taças de cristal. Acenda as velas, coloque um arranjo de flores silvestres de diversas cores.

     Convide-o para sentar-se à mesa. Sirva-lhe o que você tiver de melhor na despensa. Dê-lhe tempo para falar. Colha as lágrimas que vertem pelas faces do visitante em sua própria taça e beba este líquido amargo. Mastigue lentamente o pão seco que ele trouxe na mochila e aproprie-se deste sofrimento. Olho no olho, sem sombra de condenação nem qualquer tipo de imposição.

     Surpreenda-se ao acolher esse hóspede inesperado. Você pensou que fosse Jesus, mas era seu irmão. Você pensou que fosse seu irmão, mas era Jesus.

Roselena Landenberger
 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

RADAR


Meus gemidos mais imperceptíveis,
Ele capta.
Minhas orações impronunciadas,
Ele responde.
Minhas lágrimas contidas,
Ele conta.
Meus desejos mais secretos,
Ele desvenda.
Meus pecados mais escabrosos,
Ele esquece.

Minhas canções incompletas,
Ele ouve até o fim.
Minhas frases mal escritas,
Ele lê além das letras.
Minhas falhas de caráter,
Ele já vê corrigidas.
Minhas potencialidades,
Ele as vê multiplicadas.
Minhas vis limitações,
Ele as usa como remédio
Contra o meu Ego insistente
E meu orgulho opressor.

Doce é sentir-me
Ininterruptamente rastreada
Pelo seu gracioso olhar
Que percorre o mundo todo
Acreditando que um dia seremos
O que um dia ele sonhou que seríamos
Por conta do seu amor.

Roselena Landenberger

domingo, 9 de janeiro de 2011

VIAGEM DE UM DIA

foto: Raquel Landenberger


     Fitou o horizonte incerto e inacabado e sentiu o coração murchar. A estrada longa e árida rumo ao infinito sumia na linha que separa terra e céu. Suspirou profundamente sentindo que nunca chegaria, que por mais que tentasse, por mais que o tempo se transformasse em décadas, séculos e milênios, nunca atingiria o seu objetivo. Ajoelhou-se na poeira da estrada, com as lágrimas tingindo-lhe as faces, desenhando trilhas no deserto de sua alma. Quanto tempo havia ficado ali, parado, contemplando os contornos horizontais tão inatingíveis? A vida se arrastando na monotonia da paisagem sempre igual, a motivação minguando como plantação castigada pelo sol escaldante.

     Olhou para si mesmo. Suas vestes rotas e sem cor, seu estado deplorável, seus pés cansados e machucados, suas mãos ressecadas em súplica, elevadas aos céus. Não conseguia pronunciar palavra. Não sabia mais orar. Seus pensamentos rodavam em turbilhão e vez por outra formulavam uma frase entrecortada. Não tinha mais forças, nunca chegaria, não conseguiria mais por si mesmo, tudo estava tão distante. Seu Mestre caminhara à frente por léguas infinitas e ele nunca mais conseguiria alcançá-lo. Quedara-se ali solitário, vítima das distrações da vida, da rotina, do trabalho, dos afazeres e sentia que sua situação era irreversível.

      Tudo começou quando não tinha mais tempo para sentar-se na varanda à tardinha com o Mestre e colocar em suas mãos todo o peso que sua alma havia acumulado durante o dia para sair leve e livre, pronto para uma noite de descanso profundo. Pela manhã os tantos e-mails que tinha para responder, as mensagens para checar e enviar no twitter, os sites para pesquisar e tudo o mais que era preciso fazer antes de adentrar seus compromissos diários impediam-no de separar um tempo para sentar-se à mesa com o Mestre e receber dele o alimento que mata a fome da alma e que o sustentaria pelo restante do dia. Tarde da noite sempre havia algo interessante para ver ou fazer e em seguida o sono pesava-lhe nas pálpebras, e se o Mestre o convidasse para uma conversa mais profunda à meia voz no ambiente aconchegante da sala enquanto todos os demais estivessem dormindo, ele desculpava-se por estar tão cansado, dirigia-se pesadamente para o quarto, caía na cama e de pronto já engrenava no sono. Desculpe, Mestre, uma outra hora.

      Conforme o tempo foi passando as conversas com o Mestre foram rareando até que cessaram por completo. O rumo de sua vida foi se apagando. A fumaça encobriu o céu, a neblina descoloriu a estrada. Embrenhou-se sozinho pela vida, tateando atalhos e pouco a pouco se sentiu morrendo por dentro. Até que ele acordou do seu torpor e como o filho perdido do evangelho de Lucas, sentiu o desejo de voltar. Foi nesse ponto da história que o encontramos. Desfigurado, ferido, velho e cansado. Voltemos ao início e vamos vê-lo de joelhos, suplicante, desesperançado e trôpego. Quanto tempo levaria para alcançar o Mestre? Quantos anos, décadas, séculos? Tentaria pelo resto da vida, mas nunca chegaria. A eternidade era para ele inatingível tanto quanto o horizonte que sumia na distância. A viagem parecia-lhe tão longa e custosa que ele não tinha coragem para dar sequer o primeiro passo.

     Abaixou os braços, encolheu os ombros, soltou o peso da cabeça deixando-a pender em total desalento. Abandonou o corpo sobre si mesmo e entregou os pontos. Nesse momento sentiu um toque suave e alentador em seu ombro e levantou a face em direção ao interlocutor. O Mestre! Filho, você sabe quanto tempo leva para me alcançar e para voltarmos a ter a comunhão que tínhamos antes? Silêncio. Apenas um dia, filho. Um dia de cada vez. Em seguida o Mestre estendeu-lhe a mão para ajudá-lo a levantar-se e seguiram lado a lado caminhando até o por do sol.

Roselena Landenberger

domingo, 2 de janeiro de 2011

O VIOLINO QUE PAROU DE TOCAR

foto: Roselena Landenberger

    Havia um violino que vivia tocando belas melodias. Amava reunir-se com seus amigos para juntos descobrirem novos sons, experimentarem novas harmonias. Aos domingos iam ao parque e juntavam-se a um grupo de cantores que se deliciavam com o som das cordas e dos sopros acrescido ao seu canto. Um dia, juntou-se ao grupo uma frequentadora que não sabia cantar. Ela não cantava porque vivia numa dimensão onde os sons não eram captados, e como ela não os podia perceber não tinha como reproduzi-los com sua voz. Sentava-se silenciosamente ao lado do violino e ficava observando, alheia a todos os sons. O violino sentiu-se profundamente tocado pela presença daquela senhora idosa que nunca poderia experimentar as alegrias e emoções de uma peça musical. A música para ele era a própria vida. Como poderia respirar se lhe fosse tirada a capacidade de usufruir deste elemento vital?
    Aquilo ficou martelando nas suas cordas como um pizzicato contínuo. Alguma coisa tinha que ser feita. Conversou com alguns amigos sondando a possibilidade de alguém vir a fazer algo pela nova amiga, pois ele estava sempre tão ocupado estudando novos sons. Mas ela não lhe saía do pensamento. Às vezes chorava sozinho pensando em como seria doloroso viver naquela dimensão silenciosa, e enquanto as lágrimas vertiam em sua alma suas melodias foram se transformando de "adagio com expressão (lamento)" em "andante com moto". Percebeu então que sua nova amiga não podia cantar, mas podia dançar.
    Aos poucos foi ganhando braços e mãos com mil possibilidades de movimentos. Em seguida ganhou pernas e pés para poder se locomover mais facilmente. Ocorreu-lhe que podia aprender a dançar e matriculou-se num curso de dança. Conheceu uma comunidade inteira que vivia na mesma dimensão que sua amiga do parque e entusiasmou-se a tal ponto que perdeu a noção do tempo. Enquanto aprendia um sem número de passos novos, a vida desvendava alguns dos mistérios de sua própria alma.
    Dançou tanto tempo mergulhado em silêncio que se esqueceu das antigas melodias... Até que um dia descobriu que estava em plena transformação. Sempre estivera, mas não havia se dado conta da extensão de tal fenômeno, até descobrir que suas antigas cordas, já um pouco enferrujadas pelo desuso haviam se multiplicado... Magia... Seu arco transformara-se em 88 pequeninos martelos. Seu corpo de madeira foi se esticando numa impressionante metamorfose... O violino se transformara num elegante piano de cauda. No fundo, era o que sempre sonhara...
    Depois deste fato curioso, aconteceu que o antigo Violino descobriu que tinha afinidades também com outros teclados e começou a dedilhar as teclas do seu computador para tentar escrever pensamentos e registrar impressões...
    Que outras surpresas a vida não lhe trará?
Roselena Landenberger