Da linda pátria estou mui longe... Por isso não vou me preocupar com o que tem acontecido por aqui, afinal de contas não sou mesmo deste mundo. Um terremoto aqui, outra enchente ali, incêndios, desmatamentos, guerras, chacinas, violência, tudo é cumprimento de profecias. Um verdadeiro apocalipse. Não há o que fazer, está tudo determinado.
Triste eu estou... A vida fica muito chata quando não pertenço a nada e nada me pertence. É entediante não ter uma causa pela qual lutar. Os dias são uma sequência de deveres e obrigações. Só me resta esperar pelo futuro, pois o presente não vale a pena.
Eu tenho de Jesus saudade... Pois é, ele está tão, tão distante... É impossível vê-lo na face dos que sofrem, afinal ele era um homem lindo, hollywoodiano, paradoxalmente um ariano, estereótipo de bonitão, loiro, de olhos azuis, mesmo nascendo onde nasceu, barba bem feita, cabelos longos, com aquele olhar de "eu não sou deste mundo", tão limpinho e cheiroso, de vestes brancas e manto azul. E desde que ele subiu às alturas e seus pés foram vistos pela última vez pela frestinha de uma nuvem reluzente não se achou substituto à altura, a não ser, é claro, o Consolador, que anda por aí, mas ninguém sabe ao certo onde.
Quando será que vou? Ó, mundo cruel, quero morrer, e logo! Assim poderei ir rapidinho para o céu. Não terei mais que trabalhar, sofrer, chorar, ver tragédias na TV, conviver com os pecadores e sua podridão, neste mundo em decadência, cheio de injustiça, corrupção, mensalão, apagão, guerras estúpidas em nome de Deus, etc, etc... Qual a vantagem de viver?
Passarinhos, belas flores querem me encantar... Xô, passarinho! Você está me distraindo (aliás, aqui na cidade tem tão poucos e são tão pequenos). E as flores inúteis também atrapalham minha vida de santidade. Quero mais, muito mais. Preciso de ruas de ouro, de mansões celestes (no caso de chover...), rio da vida, coroas, harpas, longas vestes. Sem lágrimas, sem espinhos, sem dor. Ô, glória!
Ó, vãos terrestres esplendores... Por que será que Deus inventou de criar estas coisas vãs e tentadoramente lindas? Deixem que tudo se acabe mesmo! Vou só assistir de camarote com a Bíblia e o Hinário na mão. Por que lutar para tornar o mundo um lugar mais habitável e digno? Para que reciclar o lixo, economizar água, ser solidário, tentar minimizar o sofrimento à minha volta, se tudo vai acabar um dia mesmo? Que canseira!
Se "aqui não é meu lar" e "avisto no portal um anjo a chamar", se posso em breve estar no céu com todos os que amo, "felizes para sempre", que se dane o mundo. É óbvio que não quero aqui ficar.
Por isso o mundo está como está. Mas, não tem problema, são apenas vãos terrestres esplendores.
* * *
Agora, uma breve explicação. As frases em itálico são a transcrição na íntegra da primeira estrofe de um hino que se encontra em um dos hinários mais tradicionais das igrejas evangélicas, com o nome de "Cantor Cristão", sob o número 484. Hinário este, canonizado por muitos e em tempos passados acoplado a algumas Bíblias como se fosse o segundo livro do Apocalipse. Contém este hinário muitos hinos tradicionais de grande valor, como "Castelo Forte", "Santo, Santo, Santo", "Noite de Paz", entre outros. Porém, alguns dos hinos tradicionais tão apreciados por tantos contêm algumas ideias que entram em franca contradição com os valores do Reino e o evangelho de Jesus. E aí vale a pena observar o conselho de Paulo: "Examinem tudo e retenham o que é bom". Com o passar dos anos, acabamos por aceitar como verdades indiscutíveis coisas que cantamos ou ouvimos repetidas vezes. Aliás, cantar é um ótimo recurso para o aprendizado, amplamente utilizado por Martinho Lutero, John Wesley e muitos outros.
Isso sem falar nos hinos patrióticos, comumente usados para difundir ideais políticos e muitas vezes para manipular massas. É interessante que acabamos por aceitar afirmações tão absurdas, simplesmente por que a repetição exaustiva nos rouba a capacidade de raciocínio. No caso do hino citado, trata-se de uma adaptação feita por um missionário americano que trabalhou na Amazônia durante cerca de 45 anos, Justus Henry Nelson (1849-1937). Na realidade ele baseou-se na letra de uma canção popular americana e utilizou a música na íntegra. A canção intitula-se "Old Folks at Home", também conhecida como "Swanee River", composta em 1851 por Stephen Collins Foster (1826-1864). Constitui-se atualmente no hino oficial do estado da Flórida. Aqui no Brasil é muito conhecida a música "Oh, Susanna" do mesmo compositor que, felizmente não foi transformada em hino (não porque eu esteja de alguma forma desmerecendo seu valor, mas porque seria, no mínimo, engraçado). Foster foi considerado pelo compositor Aaron Copland como um herói nacional cuja simplicidade e naturalidade inspiraram e definiram a música americana (*). Ouvir as músicas de Foster é como ouvir os hinos dos nossos hinários tradicionais. O mesmo ritmo, a mesma batida, os mesmos encadeamentos harmônicos, as mesmas modulações. Extremamente familiar para quem cresceu numa igreja tradicional. Inclusive dele eram algumas das músicas que ouvíamos nos desenhos animados quando éramos crianças, minha irmã e eu, e não hesitávamos em correr entusiasmadas chamando a mamãe para dar-lhe a boa notícia: "Mãe, o Pernalonga está tocando ao violino o hino da igreja!". Interessante, porque era uma "música do mundo" (de onde mais poderia ser?), pelo menos para os americanos que conheciam suas raízes populares. Equivaleria a cantar "Aquarela do Brasil" ou "Tico-tico no Fubá" com letra adaptada em nossos cultos sacros, pois que não eram profanos. Aliás, há muita música popular brasileira que poderia perfeitamente ser colocada na categoria de salmo e muito hino que deveria ser banido do repertório tido como evangélico.
A letra adaptada por Nelson reflete a teologia vigente da época (final do século XIX e começo do século XX), que em nossos dias vem sofrendo uma reviravolta, graças ao mover do Espírito Santo. Já não nos cabe mais aceitar determinadas ideias. O que me causa admiração é que nossas músicas não acompanhem nossa visão do Reino de Deus na velocidade em que deveriam fazê-lo. Acabamos por nos apegar demais aos nossos velhos hinos e cânticos, em detrimento da mensagem que deveríamos estar cantando. Mas há sempre excelentes músicos e compositores entre nós, basta termos olhos e ouvidos para encontrá-los.
Infelizmente, por falta de discernimento e informação, pasmem, este hino ainda é cantado em algumas das comunidades cristãs. É só fazer uma rápida pesquisa na internet que ele está lá para quem quiser ouvir, sob o título de "Saudade", ou "O Exilado". Seria bem melhor que fosse cantado com a letra original, em inglês mesmo. Seria inofensivo e cultural. E, além disso, bem mais compatível com os ideais do Reino. Quer mais?
Roselena Landenberger