domingo, 26 de dezembro de 2010

O ANO E O SONHO

Estrada da Graciosa, Paraná
foto: Raquel Landenberger 

      Mais um Natal se passou. A vida segue voando. Cada ano é um marco, uma etapa, um capítulo de dias contados. Dias que, na ampulheta do tempo, vão caindo um a um. Nunca sabemos quanto nos resta na parte de cima da ampulheta. Só alcançamos o hoje e o ontem, que vai se juntando aos anteontens, e assim o tempo escoa deixando marcas na gente. Fatos passados ficam cada vez mais distantes na poeira do caminho. Alguns momentos são claros, mas são poucos, em vista dos que se tornam nublados e obscurecidos, para trás da linha do horizonte. E assim corre o fio da vida. Povoado de lembranças e cheio de esperança. A linha do horizonte engole o tempo ao mesmo tempo em que mostra vislumbres do brilho do sol em cores variadas tingindo o céu de beleza, expectativas e sonhos, muitos sonhos...

      Se a gente parar de sonhar a vida encolhe, envelhece precocemente, morre antes do tempo. O sonho é um menino levado e sorridente que teima em fazer traquinagens na cabeça de quem sonha, que faz cócegas no coração, que nos cutuca e empurra, tirando-nos da inércia e encorajando-nos montanha acima. Mas, se o menino se nega a crescer e continua a brincadeira indefinidamente, definha. Não amadurece, não dá fruto, não dá em nada. Ser criança eternamente é ser doente, ser gerado sem, contudo, vir à luz. Uma gestação sem fim é um estado angustiante. Prolongadas dores de parto sem dar partida a coisa alguma.

      Mas se permitirmos que o menino cresça, à medida que vai se desenvolvendo, abrem-se novos caminhos, novas possibilidades. Sonhos antes nunca sonhados. Mas, para tanto se requer uma boa dose de esforço e dedicação. E é aí que muitos de nós tropeçamos. Nenhum jardim florescerá sem que haja empenho diário e contínuo por parte de quem se propõe a cuidar dele. Em tempos de uma teologia preguiçosa e acomodada, onde decretamos bênçãos em cima de bênçãos, acabamos por achar que o gênio da lâmpada maravilhosa nos concederá todos os nossos desejos assim, de mão beijada. É só pedir, ou melhor, mandar. Triste engano! Sem trabalho árduo e persistente não haverá realização alguma. Não somos senhores, somos servos.

      Quando Jesus foi acusado de quebrar uma norma antiga ao trabalhar no sábado, respondeu aos seus acusadores: “Meu Pai trabalha até hoje, e eu também”. Jesus, aquele por meio do qual foram criadas todas as coisas, não ficou esperando em muda contemplação até que as coisas caíssem do céu. Não ficou sonhando com o Reino de Deus. Nem decretou coisa alguma. Ele simplesmente fez o que tinha que ser feito. Arregaçou as mangas e colocou-se a caminho. Não tinha onde reclinar sua cabeça.

      Sabemos que “Deus trabalha no turno da noite”, e que ele providencia o nosso sustento enquanto dormimos, como diz o Salmo 127. Mas não podemos usar isto como pretexto para reclinar a cabeça sobre os nossos sonhos e deixar que permaneçam sonhos pela eternidade adentro. É hora de trabalhar. A nossa parte nem Deus vai fazer.

Roselena Landenberger

domingo, 19 de dezembro de 2010

VISITAÇÃO


     Neste Natal o menino Jesus veio me visitar.

    Desci as escadas e lá estava ele na minha sala. Seu riso infantil encheu o ambiente de canção e tornou o meu coração menos árido e rabugento. Seu olhar inocente me desmontou e tive de abrir mão de todas as minhas defesas. Suas mãos balançando no ar com seus movimentos desconexos de simplicidade e desapego fizeram-me sentir quão tola sou ao buscar a aprovação e o louvor através do mérito. De repente, diante da minha muda contemplação, toda sem jeito, sem saber o que fazer, ele fez beicinho e começou a chorar bem alto. Fiquei aflita, perdi a prática com crianças pequenas. Faz tanto tempo que tive um bebê entre os braços que já havia esquecido como se faz esse tipo de coisa... ”Meu Deus, o que é que eu faço?”

     Tomei-o nos braços e ao sentir o pulsar do meu coração ele foi se acalmando. Subi mansamente os degraus da escada e levei-o para o meu quarto. Coloquei-o num lugar mais protegido e quente. Troquei-lhe as fraldas, alimentei-o e ele dormiu com um sorriso nos lábios. Ao sair, deixei a porta entreaberta, no caso de ele vir a chorar novamente.

     Os dias foram se passando e ele gorjeava, chorava, ria, chorava de novo, sujava as fraldas, pedia leite, carinho, colo, atenção, mordiscava os próprios pés, cantarolava, balbuciava. Foram dias calmos, amenos. Nem notei o tempo passar. Nas minhas tarefas habituais quando as coisas não davam certo, parava, respirava fundo e começava outra vez, sem me irritar. Uma estranha e rara longanimidade tomou conta de mim e eu não me reconhecia mais. Uma paz suave e terna me invadiu, sem que eu me desse conta.

     Até que, certa noite, antes de me recolher, fui procurá-lo para checar se estava tudo bem. Porém, ele havia desaparecido tão misteriosamente como aparecera. Procurei por todos os cantos, mas sem esperança de encontrá-lo. Desci lentamente os mesmos degraus e sentei-me um tanto atordoada no sofá onde eu o encontrara dias atrás. As luzes da árvore piscavam monotonamente num colorido quase que melancólico. Apoiei a cabeça entre as mãos e, depois de algum tempo em meditação, caí em mim.

     Ele sempre estivera comigo.

Roselena Landenberger

domingo, 12 de dezembro de 2010

BENDIÇÕES HEREDITÁRIAS

   É comum pegar-me dizendo algo que não combina. Quando caio em mim, percebo o quanto ainda tenho do verniz religioso. Ruínas que precisam desaparecer para dar lugar ao jardim. Velhos templos pagãos, ídolos em decomposição.
 
    Nossos filhos podem ter acesso a esta ampla libertação. Um privilégio, um presente. Já não compartimentam suas vidas porque conseguem perceber Deus de forma bem mais abrangente.
 
    Gestos sutis, olhares furtivos, comentários infelizes, deslizes da "não graça", conforme tão bem definiu Philip Yancey. Coisas assim podem passar completamente despercebidas para nós, mas não para nossos filhos. Seus radares vorazes captam qualquer movimento em falso e, pronto! Somos pegos em nossas próprias contradições...
 
    Resta-nos ter a humildade necessária para reconhecer nossos vergonhosos erros e tentar raspar mais uma dolorosa parte daquilo que ainda resta da tão infame religiosidade. Como assegurou C. S. Lewis, quando tomamos o rumo errado, o caminho de volta é o caminho mais curto.
 
Roselena Landenberger

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

CANTILENAS E BAILADOS

    
    Já não temo mais as cantilenas monótonas do coração onde a brisa imprime sempre o mesmo sopro e a cadência é lúgubre e insistente. Eis que o sol já despontou no horizonte da alma tingindo o céu interior de cores e matizes impregnados de vida.
 
    As quimeras de tempos passados desfizeram-se em bolhas etéreas de sabão e no jardim da vida as sementes germinaram no solo fofo, regado pelas lágrimas desoladas da contemplação de uma imagem retorcida e real de um ego assustador que sorria desgrenhada e descaradamente, refletido no abismo.
 
    Com mãos de ternura o barro vai sendo moldado. Por mais ternas e amorosas que sejam estas mãos, é mister que empunhem ferramentas que rasgam de alto a baixo, dilacerando em dor e tormento.
 
    O fio sombrio da obscuridade, puxado do turbilhão das profundezas, ao perpassar pelo tear do Mestre irradia ao toque de suas mãos habilidosas. Somos ambos tecelões da alma e bailamos entrelaçados, rodopiando na linha do tempo, rumo à eternidade.
 
Roselena Landenberger

domingo, 28 de novembro de 2010

O DIA QUE NÃO FOI A MESMA COISA

    "Todo o dia a mesma coisa... Todo o dia a mesma coisa", resmungava a Dona Ida, aquela da vendinha da esquina, zona norte de São Paulo, anos 60, 70, 80... Ajudava a servir pinga no estabelecimento comercial do irmão. Não tinha só pinga, tinha leite – no tempo em que era vendido em garrafas retornáveis – sacos de arroz, feijão, farinha, que ela colocava em saquinhos de papel e pesava numa balança de ponteiro, de acordo com o que o freguês solicitava. Entre balas, doces de batata doce ou de abóbora, marias moles, barras de sabão de coco, garrafas de tubaína e mantimentos diversos as horas se arrastavam lentamente, tanto quanto os chinelos daquela senhora. No maior tédio. Dona Ida juntava o que lhe fora pedido, rabiscava os preços numa caderneta com as pontas das folhas amarrotadas e somava os valores com a sua "boa vontade" habitual.
 
    Em parca linguagem eclesiástica ela repetia a todos a mesma frase: "Todo o dia a mesma coisa... Todo o dia a mesma coisa..." E seguia, ou melhor, quedava-se triste. Nenhum sorriso, sempre de mau humor e semblante caído. Em suas idas e vindas, Dona Ida literalmente se arrastava para providenciar as mercadorias pedidas. "Todo o dia a mesma coisa". Movia-se com dificuldade na vendinha escura e apertada. "Todo o dia a mesma coisa". Primavera, inverno, outono, verão, chuva, sol, Natal, Carnaval, Páscoa... "Todo o dia a mesma coisa". Sem alegria, sem colorido. Uma rotina que matava a alma.

    Mas houve um dia em que choveu torrencialmente. Choveu como não chovia há décadas. O Rio Tietê transbordou e a água caminhou cobrindo as ruas e invadindo as casas até entrar de mansinho na vendinha da esquina.

    A água subiu.

    A água baixou.

    Dona Ida colocou-se à porta da venda com a mesma fisionomia desolada de sempre e calou o seu refrão.

Roselena Landenberger

domingo, 21 de novembro de 2010

CANÇÃO PARA RAQUEL

Liberta teus sonhos prisioneiros,
Que dancem livres, altaneiros.
Mantém tua chama acesa,
Sem receios nem certezas.
 

Que o teu coração pulse ao sabor do vento,
Navegando nas asas de quem sopra onde quer:
Todo o amor, toda a esperança
Nas mãos de quem não se cansa.
 

Que teus pés corram ligeiros –
Passos largos e certeiros:
Tuas mãos trabalhem incansáveis
Mesmo nos tempos instáveis.
 

Brilhe o sol no teu olhar,
No teu sorriso, o luar:
Seja a lágrima o orvalho
De um caminho sem atalho.
 

Lança a voz ao horizonte,
O teu canto aos quatro cantos.
Convoca as constelações
Para ouvirem as canções
Do brilho do sol,
Da luz do luar –
Saudade e ternura,
Amar e esperar.
 

Roselena Landenberger

domingo, 14 de novembro de 2010

ARTUR ALBERTO

 
      Um dia, numa de nossas reuniões, ele nos disse que iria embora. Desatei num choro incontrolável, ali, na frente de todos. Ele olhou para mim, enternecido, e disse: "Não sabia que você me amava tanto". Eu também não sabia.

     Era um homem duro, taciturno, de grande erudição, extremamente inteligente e perspicaz. Poucas palavras, olhar profundo. Sempre que podia, eu fugia dele. Quando numa de suas muitas visitas pastorais, vinha até nossa casa, ficava a olhar detidamente bem na nossa cara sem dizer palavra. Parecia que podia ficar horas só nos observando, perscrutando com seu olhar clínico.
 
    Durante anos ele estendeu a mão para minha filha ainda pequena, sem que ela lhe desse a mínima. Mas ele era um expert na arte de esperar. Certa vez, para puxar conversa, ele perguntou-lhe o nome. Ela, com cerca de quatro ou cinco anos, escondeu-se atrás da poltrona da sala em que estavam e, esticando o braço para cima do encosto, escreveu letra por letra do seu nome em alfabeto manual, como num teatrinho de marionetes. Eu não estava presente para ver a expressão do rosto dele. Somente cerca de quatro anos mais tarde é que minha filha finalmente retribuiu o cumprimento, estendendo-lhe a mão de volta, para meu espanto.
 
    Por causa do meu envolvimento nos bastidores da comunidade ele acabou por convidar-me para fazer parte de sua equipe ministerial, participando das reuniões semanais. Relutei. Desfiei algumas desculpas. Mas ele não era homem de aceitar desculpas. Trabalhava às claras, e só aceitava a verdade, nada além da verdade. Convidou-me novamente e outra vez até que, para não ficar chato, cedi.
 
    Ele era muito exigente com sua equipe. Às vezes eu me chocava com sua forma direta de dizer o que tinha que ser dito. Cravava as palavras como punhais certeiros em direção ao alvo. E que pontaria! Dizia tanto com tão pouco. A sala em que nos reuníamos, o gabinete dele, foi se tornando um lugar de profundo aprendizado. Fotografei-a sob vários ângulos e arquivei-a numa pasta de memórias, de boas memórias. Colhi o aroma que impregnava a sala num frasco, para tê-lo sempre à mão. Cheiro de biblioteca. Vinha da sala ao lado, sua biblioteca pessoal. Cada detalhe da sala rústica ficou gravado nas minhas lembranças. Os quadros, o arquivo antigo, a escrivaninha, as cadeiras estofadas já desgastadas pelo uso, tudo muito simples. Suas orações ainda ecoam em minha mente, e seu jeito profundo de nos encarar.
 
    Levo pela vida afora as marcas da personalidade intrigante e instigante que foi a dele. Bendito seja Deus que me forçou um tantinho essa aproximação, para mim inicialmente tão indesejada. Como um pai que dá um empurrãozinho no filho tímido, a fim de que ele não perca oportunidades valiosas de crescimento, assim Deus me empurrou delicadamente na direção deste homem inesquecível. Lembro-me das palavras de A. W. Tozer que diz em algum lugar que os homens de Deus nem sempre aparentam ser agradáveis, porém, atrás de uma fachada não tão atraente e de palavras muitas vezes duras podemos encontrar uma riqueza de valor incalculável de vivências, crescimento e sabedoria. Tozer tinha razão. Aquele homem não foi só meu pastor e mentor. Ele foi mais que isso. Ele foi meu pai.

Roselena Landenberger

domingo, 7 de novembro de 2010

CONSCIÊNCIA

    Criar é apaixonante. Uma receita nova. Um trabalho artesanal. Um conto, um canto, um ponto multiplicado. Ver as muitas possibilidades de realizar uma tarefa. Fazer com garra, com sonho, com imaginação.
 
    Criar é transcender. É mágica, fuga do tempo, saída de emergência para a eternidade.
 
    Muitos de nós perdemos a capacidade para criar. Talvez nossas asas foram cortadas na tenra infância. Mais tarde, a luta pela sobrevivência se interpôs, abafando o florescer da vida pulsante. Acostumados a sempre competir, adoecemos, vítimas de uma sociedade de consumo. Uma propaganda é resposta para outra que anuncia um produto concorrente. Um filme é cópia mal feita de outro. Cada vez mais tosco, cada vez mais fosco, menos humano, mais coisa.
 
    Reconstruir o mundo é fazer ressaltar as diferenças. Não podemos pintar tudo da mesma cor. Há matizes inexplorados pululando no Universo. O Criador nos presenteou com uma gama infinita de tons. É preciso coragem para ousar fazer o que a grande e arrasadora maioria não quis sequer experimentar. Por medo, comodidade, falta de motivação.
 
    Criar é ser mais parecido com o Criador, é participar da natureza do seu ser. Criar vislumbres de alegria e esperança em meio ao abandono e à dor. Ser Doutores da Alegria, Mestres da Compaixão, PhDs em Solidariedade. Ousar mudar as cores sombrias do quadro em preto e cinza da pobreza e da rejeição. Sem negar a realidade brincando de faz-de-conta, mas na doação de si mesmo para aliviar o sofrimento dos que choram suas perdas numa sociedade que valoriza o falso, o efêmero, que dá carta branca ao corrupto e assiste ao jornal da TV de braços cruzados...
 
    Bem, vou parar por aqui, porque a minha consciência começou a me incomodar...
 
Roselena Landenberger

domingo, 31 de outubro de 2010

FRASE ESQUECIDA


    Desde que nossas pupilas tornaram-se áridas qual solo seco e rachadiço, nosso coração foi murchando e perdendo a força. O sangue passa automaticamente por nossas veias retorcidas contorcendo-se custosamente para tentar achar um caminho dentro do labirinto da alma envolta nas sombras e no luto cinzento. O sofrimento do mundo já não nos comove mais. Que nos importa se crianças forem impedidas de ver a luz? Que temos nós contigo, menina? Que diferença fará se teu filho nascer ou se perecer ainda no teu jovem ventre? Valerá a pena colocar em risco nossa segurança para salvar uma vida que seja? Talvez suspiremos tentando aliviar a consciência dormente: um delinquente a menos por estas paragens. Jogar um raio de luz na escuridão poderá nos custar um preço que não estamos dispostos a pagar. Melhor manter os olhos secos e a alma estanque. Sem dor, sem remorsos, sem sofrimento. Melhor para todos.
 
    A menina dos nossos olhos é o nosso próprio umbigo. A omissão é o passaporte mais seguro para a tão desejada paz de espírito. O que eu quero é sossego. A ética da vista grossa é fácil e o seu caminho agradável e atraente.
 
    Por que iríamos arriscar nosso emprego, nossa garganta em defesa dos valores do Reino de Deus? Vejam o que aconteceu com Dietrich Bonhoeffer. Fez o que fez e simplesmente perdeu tudo. Preso durante um tempo e enforcado às portas do final da segunda guerra, porque se dispôs a agir diligentemente para tentar impedir que a loucura de Hitler chegasse ao ponto em que chegou. Tudo o que ele avistava da janela de sua cela eram pequenos insetos e pássaros – quando tinha sorte. Foi esse cenário que lhe trouxe pequenas alegrias enquanto aguardava, aguardava e aguardava a tão sonhada utopia que não pôde experimentar.
 
    Não, não vale a pena. Vamos continuar de olhos fechados. Deixemos a miséria e a dor tomarem conta daqueles com quem nos deparamos. Não vamos interferir nas suas decisões. Deixemos que optem pela morte e destruição. Não vamos nem sequer insinuar alternativas ou caminhos de vida. Não será bom para o nosso currículo.

     E quando nossa intelectualidade, retórica, argumentos irrefutáveis e postura ética tiverem nos distanciado milhares de milhas dos faróis sinalizadores do Reino, só nos restarão o desespero e o horror. Seguiremos lamentando-nos da nossa própria miserabilidade, completamente perdidos, nossos olhos sem brilho fitando o espelho e perguntando-nos o que foi que aconteceu conosco.
 
    Mergulhados em nosso próprio cinismo, andando em círculos, olhar desvairado, loucos, insanos, nossa única saída, se Deus assim o permitir, estará ainda cravada numa frase antiga de um manuscrito ultrapassado, cheio de poeira e corroído de traças: "Lembra-te de onde caíste, e arrepende-te...".

Roselena Landenberger

 

domingo, 24 de outubro de 2010

CORAÇÃO CRISTÃO


Pai,
Livra-me da religião
Dos laços do auto-engano, do legalismo,
Do pecado do cinismo.
Livra-me da maldade
De julgar e condenar
O meu próprio irmão
Do alto da minha perfeição.
Desvia os meus olhos, Senhor,
Da imagem distorcida no espelho
A me sorrir com orgulho,
Das mentiras da própria alma,
Da cegueira a respeito de mim,
Da altivez do coração.
Antes o remédio amargo da cura
Que o câncer da ignorância.

Estou cansada, Senhor,
Cansada da religião.
Quero o caminho da cruz,
A dor palpitante e viva
De saber-me miserável pecadora.
Quero a espada que traspassa,
Que julga toda e qualquer intenção.
Longe de mim o conforto
De estar sempre com a razão,
De ter todas as respostas.
Longe de mim o sentimento
De auto-satisfação,
Onde não há lugar de pesar,
Nem chance de arrependimento.

Quero um coração cristão,
Para trás, religião! 


Roselena Landenberger

domingo, 17 de outubro de 2010

ORAÇÕES E ANOTAÇÕES

    Quando me percebi mesquinha e interesseira, parei de orar. Afinal minha motivação para a tal vida de oração sempre fora fútil e egoísta. Anos de oração mecânica e vãs repetições gentílicas congelaram meu relacionamento com Deus na infância da minha vida e da minha caminhada com ele. Tudo o que eu sabia orar consistia em pedir "se for da tua vontade abre ou fecha tais e tais portas", e coisas do gênero. A coisa toda foi ficando tão automática que se transformou num ritual morto e sem sentido. Orações decoradas e repetidas a esmo em horários preestabelecidos. Era uma fórmula fácil de ser aplicada em qualquer situação. Até que um dia eu precisei realmente de socorro. Foi quando ousei colocar os pés para fora de minha confortável redoma religiosa, envolvendo-me no serviço a outras pessoas que descobri-me perfeitamente incapaz e despreparada para atender suas necessidades. Aí, comecei a orar, no desespero mesmo. Sem importar-se com minhas verdadeiras motivações, Deus foi adentrando mais e mais na minha vida. Pois ele é a Misericórdia em Pessoa.
 
    Ao mesmo tempo em que Deus graciosamente tocava nas profundezas da minha alma revelando-me coisas que eu não sabia a meu respeito, meu status religioso foi subindo. As pessoas passaram a me considerar uma "mulher de oração". Adquiri um nome e um título eclesiástico. Comecei a gostar da situação. Exercia um ministério de luzes e palco e isso facilitava as coisas. O status e a admiração de outros sempre me pareceram tão atraentes, que a ideia foi tomando corpo em minha mente e em meu coração. A ideia de que eu era melhor do que a "plebe".
 
    Naquela época notei que se orasse com certa entonação de voz e interpretasse meu papel direitinho, as pessoas acabariam subindo mais um ponto no seu conceito a meu respeito. Então usei este recurso também. Funciona que é uma maravilha...
 
    O lado negro dos fariseus subiu-me à cabeça e o resultado foi desastroso. Se bem que, Deus, apesar de tudo, continuou trabalhando para que eu pudesse aos poucos perceber quem eu realmente era. Não foi uma "visão beatífica", foi uma visão "horrorífica", muito difícil de ser engolida, mas que deixou marcas profundas. Se, por um lado eu me sentia como a pior das pecadoras, por outro, continuava achando-me melhor do que os outros cristãos por ter tal consciência. Paradoxal. Mas, quando percebi minhas reais intenções foi que parei de orar.
 
    Pouco tempo depois, fui confrontada novamente, desta vez em outra área. Durante os ajuntamentos da minha comunidade havia adquirido o hábito de anotar as mensagens como se fossem aulas. Comecei a colecionar cadernos de anotações e pretendia juntar muitos outros, quando percebi que isto também fazia parte de um jogo, mais um teatro que eu representava muito bem. Não que todos os que gostam de anotar mensagens nas celebrações coletivas se encaixem no mesmo esquema. Mas, para mim ficou muito claro que aquele velho hábito de debruçar-me sobre um caderno anotando diligentemente cada ideia ou o máximo possível de palavras já não mais me servia como algo saudável. Havia se tornado um hábito pernicioso, um vício.
 
    Foi quando participei de um estudo realizado na mesma comunidade. Ao término da reunião o líder solicitou que alguém encerrasse orando voluntariamente. Uma pessoa apresentou-se para orar. Ela era uma das minhas. Anotava tudinho, ou quase. Durante o tempo que passamos juntos naquele dia havíamos conversado muitas coisas a respeito do Reino de Deus. A respeitável pessoa, ao orar encerrando a reunião que ela havia (como eu) anotado com tanta dedicação, contradisse a maioria das coisas que havíamos acabado de ouvir e anotar com toda veemência. Lembro-me bem de um apelo feito antes da citada oração em prol de uma arrecadação de doações que seriam vendidas, cujo lucro seria revertido em favor de várias ações sociais apoiadas pela comunidade. O líder reforçou que deveríamos doar as coisas que ainda gostaríamos de usar, que tinham valor para nós, que não eram consideradas como refugo. Deveríamos abrir mão destas coisas e trazê-las para que abençoassem outras pessoas. Pois bem, dentre as várias coisas que a citada pessoa pediu em oração, além das contradições a vários itens do estudo, também pediu a Deus que nós pudéssemos trazer daquilo que estava sobrando em nossos lares para ajudar os necessitados.
 
    Depois dessa, parei de anotar as mensagens. Talvez ainda volte a fazê-lo, não sei. Mas por enquanto o impacto dessa cena ainda perdura no meu coração e não vejo sentido para que eu retome o velho hábito. Tempo para tudo, diz o Eclesiastes. Tempo para anotar no papel, tempo para gravar no coração. De nada me adiantarão folhas repletas de frases e palavras chave, e dentro de mim, um coração em branco. Ou, pior, um coração incoerente, contradizente.
 
    Quanto à oração, mudei o enfoque. Quero orar com a correta motivação. Quero orar porque quero experimentar Deus. Foi o que acabei de aprender através de uma mensagem durante a celebração em minha comunidade.
 
    E nem precisei anotar.
 
Roselena Landenberger

domingo, 10 de outubro de 2010

AMPULHETA

    Há tempos eu não caminhava assim, de manhã bem cedo, entre árvores e pássaros. Havia planejado o meu dia, que finalmente seria mais tranquilo. Ao chegar em casa minha filha recebeu-me com um sorriso aberto. Ela tinha uma surpresa para mim. Uma surpresa que modificaria todos os meus planos para aquele dia calmo. Filhos... Não são eles que enchem a nossa vida de lágrimas e risos, idas e vindas, chegadas e partidas? Não são eles que embaralham todas as peças do nosso quebra-cabeça cuidadosamente encaixado, quebram a nossa rotina certinha e planejada, desestruturam tudo e todos, fazendo-nos voltar os olhos cada vez mais de dentro para fora, como uma flor que desabrocha e pouco depois se curva murcha e descorada, mas só que em sentido inverso? Ah! Filhos... Viver sem nunca tê-los tido é como viver em duas dimensões apenas. E não me refiro apenas aos filhos biológicos, mas também aos filhos da alma. Cuidar de outros é algo custoso que requer de nós sacrifício e desprendimento e por isso mesmo traz recompensas imensuráveis. Pois os filhos, sejam eles biológicos ou filhos do coração, alargam nossa visão de mundo e nos ensinam uma dimensão da vida que só pode ser conhecida por quem se dispõe a pagar o preço. Não tive como recusar. Era uma tarefa urgente, ninguém mais poderia fazê-la. Aceitei contrariada a princípio, com um peso no coração, o qual tentava inutilmente ocultar.
 
    Foi um dia repleto de alfinetes coloridos, fita métrica, tesoura, tecido, linha e agulha. Medir, cortar, zig-zag, a agulha sobe e desce perfurando o tecido vezes sem conta enquanto o ponteiro do relógio desenha círculos e mais círculos – ao todo dez e meio. Na medida em que a geometria monótona vai se delineando rapidamente, na ampulheta da alma o rancor vai escoando lentamente. A areia densa e escura move-se com dificuldade através da passagem estreita e ali ela se processa de forma quase que imperceptível tornando-se branca, leve, fina e adquirindo certa dose de brilho.
 
    Quando os dois ponteiros se cumprimentaram apontando o céu, encontrava-me exausta, porém realizada. Nós havíamos conseguido. Com a ajuda dos que me são mais queridos a tarefa foi terminada e a recompensa maior foi o sorriso daquela perturbadora e adorável mocinha que me desafiou a sair da minha confortável situação para viver o inusitado transformador.
 
Roselena Landenberger

domingo, 3 de outubro de 2010

TEMORES E DESTEMORES


    Não temo a dor da separação. Temo, sim, ser as mãos do algoz que dita as regras da tua execução. Temo ser o amor ardente que sufoca o ser amado e o joga nas masmorras cruéis da manipulação. Temo ser a voz que ecoa nos flagelos dos teus mais temidos pesadelos. Temo ser o olhar fulminante que queima os teus mais ternos e tenros sonhos. Temo ser a razão do gemido excruciante da tua alma que soluça no labirinto da agonia inexplicável. Temo ser a fada com alma de bruxa com sua varinha de condão às bordas do caldeirão em ebulição. Temo ser os pés rudes que marcham impiedosamente sobre teus mosaicos de areia colorida.

    Quero que voes livremente pelos campos do mundo trilhando o azul do infinito, sentindo a brisa a beijar-lhe as faces. Quem sabe, vez por outra voltarás para cantar com tua voz diáfana canções belas e estranhas aprendidas em longínquas terras. Ouvirei solenemente, e ao ver-te partir novamente terei o brilho das estrelas no olhar e o orvalho do céu descendo lentamente pelo rosto ao refletir no infinito um arco-íris de esperança.
 
Roselena Landenberger

domingo, 26 de setembro de 2010

PAULO ÀS AVESSAS

 

     Havia certo cristão – se na imaginação ou fora da imaginação, não sei – que a si mesmo arrebatou-se para fora do mundo. Se na imaginação ou fora da imaginação, não sei.
 
    Vivia na solidão asceta de sua cela de oração. Trancado em seu esconderijo tentava manipular as poucas pessoas mais próximas com suas citações bíblicas destacadas a esmo, de acordo com o que lhe interessava no momento. Construiu um conjunto de regras e tradições que tentava descarregar em cima dos desavisados. Edificou um muro que o separava dos míseros mortais e dos cristãos de segunda classe, pois o contato com tais pessoas acarretaria riscos desnecessários e completamente indesejáveis. Além disso, não poderia expor-se e ser pego em alguma contradição.
 
    Tinha visões. Anjos e demônios. Luzes e trevas. Adquiriu uma certa maneira de falar a respeito de Deus e para causar boa impressão forjava caras e bocas. Nada muito ousado. Um leve revirar de olhos, o pé balançando em ritmo acelerado, a voz macia e doce num enlevo espiritual invejável. Orava como só alguém muito próximo de Deus poderia fazê-lo. Colocava emotividade na voz e subia um pouco o tom, quase cantando em santo falsete. Uma diferença sutil, mas que lhe conferia um ar respeitável. Não conseguia admitir seus próprios pecados, deslizes, pisadas de bola ou coisas afins. Quando confrontado, desconversava. Sempre estava com a razão e ai de quem discordasse. Se o interlocutor não soubesse escorregar-se sabiamente, a discussão ia se estendendo a perder de vista. E como sabia aconselhar os rebeldes e carnais! Meu irmão, cada sermão...
 
    O mundo girava ao redor de si e por isso exigia que os outros fizessem o mesmo, como se ele fora o sol e as demais pessoas os planetinhas orbitando ao seu redor. Acabou por afastá-las.
 
    Muito hábil com as palavras, aprendeu a ferir de tal forma os que lhe eram próximos, pois sabia exatamente como fazê-lo. Conhecia-lhes as feridas e sabia calcular o golpe. Para tanto, não media esforços, ou seja, palavras, quando sentia que estava perdendo terreno.

    Com o tempo, seu mundo foi encolhendo assustadoramente. Começou a queixar-se de solidão. A santidade lhe custou infinitamente caro.
 
Roselena Landenberger

domingo, 19 de setembro de 2010

CINDERELA E O PRÍNCIPE ÓRFÃO

Mesa de Sapateiro II pastel oleoso s/ tela de Tânia Hanauer
http://taniacomercialhanauer.blogspot.com/

     Ela... Ela foi uma gata borralheira dentro de sua própria casa, com seus pais e seus irmãos. As duas irmãs mais velhas já haviam saído de casa para construir suas vidas e ela ficou. Mulheres não precisavam estudar. Mulheres se casavam. Mas, até isto lhe estava sendo negado. Era a primeira a se levantar e a última a se recolher. Precisava cuidar dos três irmãos mais novos que trabalhavam e estudavam para se tornarem doutores. Dormia numa cama, atrás de um guarda-roupa. Entre o fogão, a vassoura e o esfregão, os anos iam se passando e ficava cada vez mais difícil encontrar alguém com quem compartilhar a vida.
 
    Seu nome era fruto de uma superstição. Depois de três filhas, uma das quais morrera ainda bebê, teria de vir um menino. Mas o menino ainda não viera. Em lugar disso, veio mais uma menina, a quarta filha. Por sugestão das tias e comadres ela teria de carregar o nome de sua avó, o nome de Escolástica. Só assim o próximo filho seria finalmente um homem. E assim foi. O nome foi tão eficaz que o casal teve três filhos em seguida. Felizmente todos homens.
 
    Escolástica não pôde continuar na escola que ela tanto amava, e que fazia parte do seu próprio nome. Entrou aos dez, mas aos treze foi obrigada a sair. Não havia recursos para livros e cadernos. O melhor das economias teria que ser investido nos filhos do sexo masculino. Sonhava em tocar piano, mas "piano não dá camisa pra ninguém". Certa vez desenhou um teclado num caixote de madeira, na tentativa de fazer algum treino. Teve que engolir as piadas dos irmãos. Como não podia tocar, ela cantava. Tinha uma voz privilegiada, um soprano doce, de veludo, afinação exata. Cantava enquanto cuidava dos afazeres domésticos. As lágrimas escorriam-lhe pela face sem embargar a voz, que soava límpida e clara, atrapalhando os estudos dos irmãos, que vez por outra vinham fechar a porta da cozinha educadamente, sem fazer barulho.
 
    Ele... Ele foi órfão dentro de sua própria casa, com seus pais e seus irmãos. Órfão de afeto paterno. Aos quatro, levantava-se às cinco. A infância lhe fora negada. Havia trabalho para ser feito. A escola era o seu terror. "Você vai ver, vou te mandar para a escola!". O som desta terrível ameaça vociferada pelo pai o fazia estremecer de alto a baixo. Teve de ir um dia, mas ficou muito pouco para aprender quase nada. Era um lugar de castigos terríveis, monótonas ladainhas e pouco aprendizado.
 
    Viu sua mãe definhando aos poucos, vítima de uma doença sem nome, deitada numa esteira no chão. Ao perdê-la, tomado por uma dor dilacerante, sentiu-se jogado na escuridão da ausência do amor, combustível da alma. Desde cedo tentava acompanhar os passos trôpegos do pai, sem entender porque ele não conseguia andar em linha reta. Amava seus animaizinhos, que o pai arrancava-lhe das mãos sem piedade, matando-os ou vendendo-os. Aprendeu a fugir. Se o pai entrava por uma porta, ele saía por outra. Por fim, o pai perdeu o rumo da vida. Mergulhado no vício, caiu para não mais levantar. Nunca mais. Com a perda do pai, ficou completamente só, aos treze de idade. O cunhado bateu-lhe com a porta na cara. A irmã trazia-lhe vez por outra um prato de comida, às escondidas.

     Os amigos o salvaram da solidão. Teve amigos-irmãos que partilharam da sua dor. Apesar de tudo, sempre cultivou o senso de humor e driblava o medo, a fome e a solidão inventando formas para se alegrar, tramando travessuras em companhia dos amigos.
 
    Um dia resolveu partir. Colocou seus poucos pertences numa mala surrada e viajou penosamente durante muitos dias num caminhão conhecido como "pau de arara", aos solavancos, pela poeira da estrada, se é que poderia ser chamada assim. Do sertão de Pernambuco veio para o desconhecido. Cidade de São Paulo, década de 50. Completamente só, sem conhecer nada nem ninguém, ele foi tentando trabalho aqui e ali, até que descobriu-se um artesão. Subversivo, aprendeu a trabalhar com máquinas de costurar calçados, escondido do patrão, após o expediente da fábrica.

     De perseguidor passou a perseguido. Tinha ódio dos "crentes", até que foi tocado pelo Amor. "Escuta a voz do bom Pastor: 'Segue-me, vem, segue-me'". Ele não resistiu e entregou os pontos. Virou "crente". Aprendeu a ler, de fato, nas páginas da Bíblia.
 
    Começou a cantar no coro da igreja. Uma moça chamou-lhe a atenção. Chegava sempre atrasada aos ensaios, pois havia tarefas em demasiado a serem feitas: a louça do jantar para lavar, os preparativos diários para a volta dos irmãos que chegavam em casa cansados e com fome depois de um dia árduo de trabalho e estudos. Após um breve período de amizade, começaram a namorar como dois adolescentes, escondidos dos pais. Ambos estavam no limiar dos trinta anos.
 
    José sempre foi muito corajoso. Aprendeu a enfrentar a vida de cabeça erguida, sempre olhando para frente. Só vencedores agem assim. Depois de seis meses falou com o pai de Escolástica, que a contragosto permitiu o namoro. Não gostava de nordestinos. Eram gente perigosa, com a peixeira sempre em prontidão. Ele não, era de boa família. É certo que em tempos passados já tinha ensaiado uns tiros à queima roupa, mas nada grave. E com o seu usual "hum...", pronunciado em tom de "não estou gostando, mas vou engolir mais essa..." foi acolhendo aquele que, seis meses depois, tornou-se seu genro.
 
    Foi uma cerimônia simples. Escolástica, com o vestido emprestado da cunhada, sinal de mau agouro, segundo mais uma superstição conhecida. José calçou os pés de sua amada noiva com sapatos cheios da magia que destilava de suas próprias mãos, que se esmeraram em cada pequeno detalhe artesanal. Na antiga foto os noivos não sorriem. Mas são belos e trazem na expressão dos olhos o brilho da esperança, do recomeço.
 
    Lutaram com muitas dificuldades. Moraram em casas muito pobres. "Não importa aonde eu vá morar, em alto monte, à beira mar; em casa boa ou ruim, com Cristo ali é céu pra mim..." Escolástica cantava, enquanto cuidava de seus afazeres domésticos. Lágrimas deslizavam por suas faces, sem qualquer tremor na voz. Agora tinha a pequena Vera para cuidar. Vencera mais uma das pragas rogadas no momento em que nascera. Disseram as comadres, as mesmas que lhe sugeriram o nome, que ela nunca seria mãe por causa da posição em que havia nascido. Vivera no tormento daquela maldição até que, finalmente, teve a chance de aconchegar uma filha nos braços. Pouco mais de dois anos depois, nasceu-lhes outra filha. O filho homem não veio. Disseram que nunca o haviam desejado e estavam felizes com o que Deus lhes mandara.
 
    José e Escolástica se empenharam para que suas filhas estudassem. Elas não tiveram que trabalhar na infância. Puderam gozar da segurança de um lar estável. Na adolescência, finalmente, puderam estudar piano, um privilégio para poucos, conseguido com muito esforço por parte dos pais. Não passaram pela orfandade, nem pela experiência de ser escravas dentro do próprio lar. Puderam conhecer o amor de Deus e encontrar Jesus bem cedo na vida, ou melhor, foram por ele encontradas.
 
    José sempre trabalhou muito. Foi um homem de sorte. Com talento para o comércio, foi tornando a vida de sua família cada vez melhor. Nunca chegou a ser rico, não de dinheiro. Com uma vida modesta, mas confortável, continuou investindo nas amizades que a distância e o tempo não conseguiram destruir. A amizade sempre foi sua maior riqueza. A generosidade, sua marca registrada. A solidariedade, seu estilo de vida.

     Escolástica começou a pintar quadros. Suas paredes estão lotadas deles. De cores vivas e alegres, exorcizando os pesadelos dos tempos difíceis. Ainda canta a qualquer hora do dia ou da noite. Em tudo o que faz, sempre demonstra sua grande habilidade artística e sua profunda sensibilidade.
 
    Passados cinquenta anos, eles continuam juntos. Ela continua cantando e, ele, continua vencedor de desafios, trabalhando todos os dias, faça chuva ou faça sol. E foi com eles que eu, a filha mais nova, aprendi a cantar e a vencer desafios.

Roselena Landenberger

domingo, 12 de setembro de 2010

O PROFESSOR E O ANDARILHO


    Dois homens sentaram-se à mesa para debater sobre um tema e tentar responder perguntas a respeito de um dilema que diz respeito a todo ser humano. Um deles, um professor com graduações e títulos importantes. Trouxe várias publicações – uma pilha de livros dos quais ele era o autor, além de alguns artigos em periódicos – escritos de profundidade filosófica e de grande erudição, os quais apresentou-nos um a um. O outro, um homem que se assemelhava a um andarilho, vestido de trajes comuns, com uma bolsa de couro a tiracolo. Foi apresentado com um nome, uma função e uma ou duas graduações.
 
    O mediador organizava as perguntas feitas por escrito pelos participantes e solicitava esclarecimentos dos dois homens convidados. O professor tinha muitas coisas para falar, muitas críticas literárias e muitas elucubrações de profundidade teológica e filosófica. Era um privilégio estarmos ali para ouvi-lo, pois, certamente conteúdo não lhe faltava e sua palavra transmitia muito conhecimento. Ele poderia falar por horas sobre determinado tema, mas o debate não lhe permitia desenvolver seus pareceres a contento, pois o tempo era restrito. O andarilho (vou chamá-lo assim, embora o termo não deva ser aplicado ao pé da letra), bem... o andarilho foge aos padrões que construímos ao longo do tempo... Homem de grande porte, de voz grave e agradável, calmo, que gosta de rir com sonoridade, que tem muito para dizer, mas que o diz em poucas palavras... Trouxe respostas brandas e certeiras, flechas lançadas ao alvo com esmerada pontaria. Como andarilho, conhecedor de muitos atalhos, sabe o caminho mais curto para chegar calmamente no lugar certo. Por isso dispensa a bagagem extra e abre mão de todo o peso desnecessário.
 
    Saí daquele encontro profundamente impressionada. O que mais me marcou naquela noite inesquecível não foi a erudição do Mestre, mas a assertividade e a calma impressionante do Andarilho. Saí daquele encontro com o desejo profundo de ser como Jesus. Alguém que sofre porque não tem onde reclinar a cabeça, mas não se abala. Alguém que vê as pessoas de forma clara, sem preconceitos, que consegue ler intenções e que, sobretudo, ama.

Roselena Landenberger

domingo, 5 de setembro de 2010

FUGA EM DIREÇÃO DO SER



     "Não sei mais se te conheço". Este comentário atravessou-me numa manhã serena. É verdade. Tuas mãos já não mais imprimem moldes nas raízes do meu ser. Escapei. Voei longe no horizonte da vida. Tomei outras formas, diversas das que quiseste esculpir em mim, indelevelmente. Foi tudo tão fugaz que fugi das garras que me consumiam numa agonia profunda de ser quem não sei ser. Escorreguei feito sabão no limbo da ribanceira e mergulhei fundo na minha solidão. Encontrei amigos, lavei muitos pés, carreguei bacias e cingi-me de toalhas. Atordoei minha visão no emaranhado de movimentos das mãos que tentam ocultar o que o símbolo não é capaz de expressar. Viajei nos caminhos tortuosos dos mistérios da alma humana num mundo de silêncio, dor e exclusão. Não sou mais a mesma. Renasci das cinzas e do pó. Do olhar acusador, que queima o broto tenro e verde que teima em despontar do solo, não tenho mais o antigo temor. Abandonei-me ao sabor do vento. Atravessei fronteiras, conheci culturas, vislumbrei terras distantes.
 
    Ainda te amo, mas não me submeto mais aos teus caprichos. Te amo, mas não posso mais repousar meus pés no chão gelado da gaiola de ouro pendurada no lustre da tua sala. Vou amar-te sempre, ainda que com lágrimas a turvarem-me a visão. Vou amar-te sempre, mesmo que somente apareça na fresta da tua porta para saudar-te de longe. Vou amar-te sempre, mesmo que nunca saibas quem realmente sou. Vou filtrar a tua voz e deixar que adentrem os portais da minha alma somente as canções que embalaram meu sono transmitindo segurança e paz quando me sentia tão frágil e indefesa. E ao som deste teu acalanto vou amar-te eterna e profundamente pelos séculos sem fim.

Roselena Landenberger

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

PARTIDA E REGRESSO



Beijou-me a face
(Senti seu perfume)
Abriu a porta, puxou a grade
Fechou tudo e se foi.
Bateu o portão
(Ouvi seus passos)
Saiu tão mansa, não olhou para trás
Pôs os pés na estrada e se foi.

 
Quando a noite cair
E o cansaço se abater por dentro e por fora
Quando o ônibus partir
E a viagem de volta começar
Ainda estarei aqui.
 

Baterá o portão
(Ouvirei seus passos)
Puxará a grade, abrirá a porta
Cansada e com fome
Feliz e realizada.
Subirá a escada
(Sentirei sua presença)
Quando descer
Sentaremos à mesa
E celebraremos como nunca
Com o coração pleno de gratidão.
Tantos anos se passaram
Mas faremos de conta que foi só um dia
Porque ela voltou,
Ela voltou.

 
Roselena Landenberger

 

CONFISSÃO



 

Mestre, faz tanto tempo
Que eu não venho aqui e me sento
Mestre, faz tanto tempo
Que eu não venho aqui e descanso
Minha cabeça no teu colo amigo
Faz tanto tempo que não ficamos os dois em silêncio
Até que a tua mão me toque
E me cure e me salve de mim.
Faz tanto tempo que eu não fico assim
Suspensa no tempo e no espaço
Entregue, largada no teu regaço.
Faz tanto tempo que não procuro o teu olhar
Que me derrete por dentro e que me faz chorar
Faz tanto tempo que não busco escutar
A tua voz que me faz diferente
Faz tanto tempo que não sinto
O teu respirar junto ao meu peito
Que compassada e ternamente
Sopra em mim e muda a minha mente
E me conforma a ti tão somente

 
Quando foi que o meu amor por ti
Tornou-se assim tão pequeno
Esfriou-se, e por fim encolheu?

 
Enquanto derramo estas palavras
Na tela do meu notebook
Vejo tuas mãos estendidas
Sinto teu olhar acolhedor
Ouço o silêncio do teu amor
Que sem palavras me diz:
"Sempre é tempo, sempre é tempo..."

 
Roselena Landenberger

 

domingo, 29 de agosto de 2010

FOLGUEDOS FORA DO TEMPO


 
    Tenho na parede da cozinha um relógio peculiar. Em formato de um cadeado dourado ele possui como pêndulo uma enorme chave prateada. Quando eu me esqueço dele, a chave ganha vida e como uma criança travessa começa a girar em torno de si mesma... Aos poucos a trava do cadeado se solta e a portinhola redonda de vidro abre-se sorrateiramente ao som de um rangido discreto. Vão saindo como pássaros recém libertos da gaiola os números em grande alvoroço. Em seguida o ponteiro vermelho dos segundos salta como se houvera sido encurvado por uma força externa e lançado para longe, seguido pelos dois ponteiros pretos em ordem de tamanho, cada um por sua vez.
 
    Começa a festa. Os números brincam de ciranda, cantando alegre e ritmadamente suspensos no ar. Os ponteiros divertem-se num esconde-esconde e a chave dança brincalhona até sair saltando em malucas cambalhotas. Onde antes os números jaziam inertes no seu pano de fundo monótono e sem graça projetam-se imagens coloridas de lugares nunca vistos numa tela circular pirotécnica, com suas cores e luzes piscantes.

    Para nós que vivemos do lado de cá, o lampejo da eternidade acontece dentro do tempo e aos poucos caio de para-quedas num lugar bem conhecido. Neste exato momento cessam as danças e os folguedos. Automaticamente todos os moradores recolhem-se aos seus respectivos aposentos dentro do velho relógio de parede, pois percebem a minha aproximação como alguém que está preso no cadeado dourado do tempo.

    É hora de cumprir mais um compromisso.
   

Roselena Landenberger


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O DEUS DOS MEUS PAIS x O MEU DEUS


    Quando o seu Deus tornou-se o meu Deus, Ele despiu a toga pesada e escura da lei e vestiu-se com o manto translúcido da graça.

    Abandonou o antigo refrão, o cantochão, o hino austero e entoou escalas proibidas em ritmos não sacramentados. Deixou o som majestoso dos órgãos com seus tubos ecoando poder nas abóbodas das catedrais e misturou-se com o povo nas praças e salões, no forró e no arrasta-pé, entre sanfonas, triângulos e zabumbas. Colocou de lado a pedaleira em semicírculo na penumbra da luz pálida do sol tentando adentrar os vitrais e ensaiou uns passos de samba no burburinho das ruas acotovelando-se entre afro-descendentes.

    Quando o seu Deus tornou-se o meu Deus, Ele reconciliou o sacro e o profano, o cristão e o mundano, os coros eruditos e as violas caipiras, as orquestras sinfônicas e as big bands, os corais de Bach e as rodas de samba, os negro spirituals e a bossa nova, os hinos e os rocks, os santos e os pecadores.

    Vestiu-se de singeleza, falou a língua do povo, varreu as ruas, subiu o morro, tocou pandeiro e cuíca, cantou, bateu palmas e dançou na roda. Acolheu os velhos, ouviu histórias, pulou amarelinha, jogou futebol, sorriu e chorou.

    Não quero o Deus de outrora, que habita os templos distantes e frios, que tem a mão pesada e o olhar carrancudo. Quero o Deus de agora, que é Rei disfarçado, cuja mão abraça e afaga, que é Criador de todo tipo de arte e aceita toda forma de louvor, um Deus alegre e brincalhão, o Deus da graça escandalosa.


Roselena Landenberger